A reunião conjunta das Academias do Brasil e das Ciências de Lisboa resultou de uma idéia a serviço da reflexão em comum. Haverá de ser distinto momento de nossas relações no plano cultural, mas na condição de comunidade ativa e não apenas de contemplação.
Disse em Lisboa, como dizem os caboclos do meu chão nordestino que gosto de começar pelo começo. Falei na Carta de Pero Vaz de Caminha como nossa certidão de nascimento, feita no cartório improvisado das naus e sob a jurisdição de Dom Manuel. Mas a Carta de Pero Vaz de Caminha também é o nosso batismo literário. Pela primeira vez as cores tropicais do Brasil e sua gente são descritas.
Recordando esse documento inaugural, não apenas comemoramos o encontro da civilização portuguesa com os nativos e a terra do Brasil, mas comemoramos mais quinhentos anos de literatura brasileira.
Não alimento a controvérsia se a literatura brasileira começa com Gregório de Matos, com nossos árcades ou com o nosso Romantismo?
Essa é uma discussão acadêmica que fica para outra hora e para quem sabe mais do que eu.
O que não se pode negar é que a Carta registra e narra competentemente a saga de navegadores chegando ao Novo Mundo. E de forma deliciosa, brejeira, até com a graça do toque tropical.
Caminha tem olhos de um prosador que quer ver um paraíso, espécie de admirável mundo novo, naquelas terras de fascínio. Ali está, não apenas como tabelião do Novo Mundo, mas também como cronista literário do sêmen dessa civilização morena que irá construir.
Somos herdeiros não apenas da língua que usamos como intercurso social e idioma oficial do país. Somos herdeiros, junto com a língua, das tradições, usos e costumes, da civilização portuguesa e, bem compreendemos, uma certa voluptas dolendi de sua criação literária. Logo, legatários da rica tradição da literatura portuguesa. Ninguém herda apenas uma língua. Junto, vem toda a cultura de um povo. Chega toda literatura dessa gente sensível, de quem Sophia de Mello Brayner falou assim: “Os que avançam de frente para o mar/E nele enterram como uma aguda faca/Aproa negra dos seus barcos/Vivem de pouco pão e de luar”.
Irmanado na língua e na cultura, o Brasil conseguiu, é claro, criar sua independência política, cultural e literária. Mas, mesmo que as expressões literárias de hoje entre Brasil e Portugal mostrem diferenças no trato da mesma língua, como poliglotas em português, esculpimos, na talha do tempo, a perenidade das criações estilísticas feitas com o mesmo instrumento: nosso idioma comum. Já ensinou Agustina Bessa-Luís que “só as lágrimas e o riso não têm sotaque”. Alexandre Melo, notável crítico de arte, e homem de letras, defendeu em situação assemelhada, que essa postura é bem distinta daqueles antolhos do que chamou localismo, a posição absurda de quem ignora as inconveniências do isolacionismo.
Diário de Pernambuco (PE) 10/11/2006