Os 61% de maioria eleitoral de Lula endossam a força de uma vitória que tem que ser lida em todas as suas dimensões. De saída, pela "virada de página" que representou quanto a derrubada do arcaísmo político brasileiro, que começara com a queda, de vez, de ACM e continua agora com a perda de Roseana e do clã Sarney no Maranhão. O que está em causa é a remoção de vez do coronelismo político do país, a se transformar na maior vitória da consciência política despertada pelo PT.
Foi o Nordeste que deu a Lula as vitórias esmagadoras, no impacto mais importante do voto obrigatório. Ou seja, o de que o desmunido fez da ida às urnas um gesto político quando tem, de fato, em quem votar e se libera de vez de toda dominação imemorial do sistema, seus rebenques e seus caminhões, que ditaram a permanência do status quo nos porões do país. Nosso dado emergente é o desse eleitorado que se livra das oligarquias políticas, por sobre as econômicas, e cria um poder de fogo novo como o do "povo de Lula" na contenda política. Comanda-o o toque efetivo da mudança e por ela - no que atingiu o bolsa-família - uma ruptura continuada com os conformismos de todo o sempre.
carisma. O 29 de outubro mostra também o caráter personalíssimo da vitória de Lula, sem o PT e sem herdeiros. E, ao mesmo tempo, arredio ao pedido das tentações carismáticas, de que sempre lhe preservara a militância de quadros e a visão grupal da legenda. É também um Presidente que continua no Planalto, desarmado da larga maioria dos seus primeiros companheiros de poder, e a enfrentar, ao mesmo tempo, o peso de uma coligação múltipla no segundo mandato. Seu trunfo maior, entretanto, é o da alforria que o esmagador da vitória lhe emprestou, como novo crédito de espera e paciência do "povo de Lula". Votou, claro, pelo começo inarredável de vantagens que lhe permitiu o bolsa-família, mas continua a gratificação básica do "outro Brasil" no poder; do "Lula-lá" e do povo que chegou ao Planalto.
A novidade do primeiro mandato foi a mudança pelo acesso do desmunido, pelos serviços e pelo estipêndio, a partir do ingresso na rede de educação e saúda, mesmo antes de uma garantia efetiva de emprego. Tanto foi medíocre a ampliação da carteira assinada, tanto não só se generalizou o emprego informal, mas o apoio à produção familiar e ao mini-crédito. O novo governo vai defrontar a consciência emergente crescida dos 11 milhões de famílias beneficiadas pelo que, primariamente, se viu como assistencialismo, mas traduziu de fato o despertar de uma mobilidade social cujos juros políticos apenas começam. O "povo de Lula" não se associa necessariamente ao proletariado sindical, nem precisa do retorno relativo da classe média, arrependida no excesso de votos-pito que transferiu a Alckmin no segundo turno.
Este eleitorado do presidente dilata, mas a espera terá o seu tempo de cobrança no que representará a definição do programa de desenvolvimento social permitido pela estabilidade ortodoxa do primeiro mandato e, já, a saída do liberal capitalismo para dizer-se a que, de fato, veio Lula ao Planalto. As escaramuças com Alckmin no tira-teima do segundo turno assentam o papel novo e decisivo do Estado nesta mudança.
O novo quadro político nasceu da associação entre o PT e o PMDB, tirando esse partido da condição clientelística de todo o sempre. É o que também, de outro lado, empurrará o tucanato para o conservadorismo ostensivo, se persistir no beijo da morte da liberal democracia sobre o velho ideal da promoção coletiva. Mais ainda, poderá de vez chegar ao precipício se se agarrar às teses defuntas da luta contra a corrupção num Congresso que, de saída, desmoraliza todos esses propósitos. Sanguessugas e mensaleiros voltaram, consagrados pelas urnas, aos novos plenários, desafiam a onda da purga política e, de vez, qualquer intuito de reforma partidária ao começo do novo governo.
Todo capital político aí está para que Lula, assentado no seu povo, dê de vez o passo à frente e, de logo, sem pretextos nem avatares, para entender qual é a paciência de quem por ele espera, e do que seja, de vez, a melhoria social do Brasil do outro lado.
Jornal do Commercio (RJ) 3/11/2006