Terá a palavra uma existência própria, independente da idéia? Um poeta, amoroso de seu instrumento, diria que sim. E teria a seu favor uma opinião muito antiga, de Dionísio de Helicarnaso, que afirmou ser a linguagem "alguma coisa de exterior à paixão ou à idéia que nela se manifestem, e como coisa que pode ser manejada à parte e ter beleza própria, independente do pensamento".
Séculos depois Mallarmé, cioso de que a palavra é capaz de tudo, fez a apologia do valor musical da palavra ("rependre à la musique son bien", no que foi seguido por Verlaine: "De la musique avant toute chose"). Mallarmé insistia que "as palavras podem criar uma realidade ou, pelo menos, uma realidade superior".
Pode-se dizer que Sonia Sales, que teve lançado este ano um livro de poesia chamado "Os dedos da morte", com poemas em português e, na parte final do volume, os mesmos poemas em espanhol ("Los dedos de la muerte"), chega a valorizar suas palavras ao mesmo tempo em que busca firmar-se em idéias, sendo a idéia da morte a que mais se apega às palavras, mas ao mesmo tempo delas se afasta porque a simples idéia do fim não cabe inteira nas palavras do dia-a-dia.
Em seu poema "Breve oração", por exemplo, a idéia do outono surge como próxima de um fim e como que foge da morte e ao mesmo tempo a busca: "As folhas caíram antes/ do outono e a saudade, nem/ chegou a ser, mas os mortos/ estavam lá./ Frios e inconsoláveis".
No fundo, também o poeta busca insuflar ritmos nas palavras, e o ritmo salva, o ritmo é a música ínsita nas coisas que liberta o homem da angústia de todos os dias. De vez em quando a poesia de Sonia Sales mergulha numa linha de revolta, de certa maneira violenta: "Tenho medo:/ da noite sem fim./ Da tumba onde estarei/ exposta ao meu destino/ como carne devorada por vermes." Logo em seguida: "De mim,/ um punhado de palavras/ aprisionadas em livros,/ jogados em algum canto/ de uma biblioteca sem uso./ Poeira, lixo/ como tantos".
A beleza das palavras não se esconde, mesmo quando o tempo as assalta. Acima de tudo, corre o tempo. E nessa corrida pousa Sonia Sales, que solta estes versos: "O relógio registra/ segundos, minutos, vidas./ Na Bósnia, no Kosovo, nas/ Ilhas Trindade, corre o tempo,/ impiedoso, sem se preocupar com o muito/ que desejamos legar, os livros/ que ainda não fizemos, as/ saudades que certamente virão".
Pode-se perguntar onde estará o "coração da matéria". Na aceitação ou na revolta? Sobre ambos, ergue o escritor seus poemas, seus contos, suas análises, suas raivas e suas fugas. Examinando as tendências da poesia de hoje, ponderou o escritor mexicano César Fernandez Moreno que a crise de nosso tempo está na falta de palavras, isto é, não sabemos o número suficiente de palavras para chegarmos a entender as coisas.
Acrescente-se que, de acordo com estatísticas em vários países, 50% da conversação normal das pessoas compõe-se de apenas 69 palavras e que, dos mais ou menos seis bilhões da população do mundo, quase três bilhões são analfabetos e que mesmo a literatura mais banal e comum é leitura de minoria. Daí a necessidade de insistirmos na palavra, que é a base do diálogo, do pensamento puro e do texto escrito, seja poesia ou prosa.
Diante de uma poesia com ao de Sonia Sales, há que louvar seu amor à palavra e o modo como se apossa dela para levantar idéias em versos e buscar um entendimento do mundo, inclusive num sonho de primavera: "Costuro estrelas/ brilhos e vidrilhos./ Um alfaiate/ no anil sideral./ As andorinhas pousaram/ no bezerro de ouro,/ o vinho escorre da taça/ em chamas, mas em segredo/ inventarei a primavera,/ cantarei no coral da igreja/ tocando meu violão, e usarei/ no domingo meu vestido azul,/ costurado de estrelas."
Para continuar e fazer mais do que no passado, o poema pede à "indesejada das gentes", de que falava Manuel Bandeira, para não vir já: "Não venhas já./ Voltarei à infância, não/ temerei professores de/ matemática, serei campeã/ de vôlei./ Escolherei o homem certo, que/ um dia será meu rei."
"Os dedos da morte", de Sonia Sales, é um lançamento das Edições Galo Branco, sob a direção de Waldir Ribeiro do Val. Projeto gráfico da autora. Capa e contracapa: detalhes da pintura de Albert Dürer (1471-1528). Prefácio de Hernâni Donato.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 31/10/2006