O segundo turno nos beneficia de um duplo salto na maturidade cívica do país. Voltou-se ao debate para a definição de razões de decidir no pleito, abandonando a presunção das avalanches fatais como se anunciava a da eleição de Lula. De outra parte tornou-se nítida a consciência da mudança, no novo avanço de votos do petista. Muito da ameaça a Lula não teria passado do pito, sem, de fato, nos ameaçar da torna ao país de sempre.
O acirrar-se o denuncismo moralista tornou ainda mais clara a justificação de um status quo, sem sequer o pudor da maquiagem. Nos primeiros resultados da reação ao debate vê-se que a própria classe média, vista como manancial dos votos de Alckmin, encontra-se hoje, a meio a meio, entre os candidatos.
Doutra parte, a oposição a Lula não levará, de chorrilho, os votos do PDT ou do PSOL à direita. O partido de Brizola subordinou a definição de candidaturas a um questionário prévio onde se torna impossível a Alckmin, sob pena de retumbante hipocrisia, contradizer o neoliberalismo tucano. E a legenda de Heloísa sabe onde está a esquerda fora da enfermaria da radicalidade. Claro, o Sul do país vai voltar às urnas contra o atual situacionismo federal. São os males de economias regionais, de há muito atingidas, que levarão Lula, no poder, a ser confrontada com o efetivo perde-e-ganha das políticas de exportação na conjuntura global.
O disparo, já, dos 19 pontos do petista no segundo turno mostra até onde as próprias situações estaduais, em larga parte contra o PT, não deixaram de assegurar em Estados-chaves, como Minas ou Rio de Janeiro, o ganho de Lula, ecoando a contundência dos 75% contra 23% no Nordeste brasileiro. É a partir, entretanto, de São Paulo que o panorama eleitoral do primeiro turno indica a correlação entre a região mais rica do país e o inquietante começo de um cinismo político, a partir de votações teratológicas como as de Clodovil, mais de escárnio que de protesto democrático. Votou-se, no passado, no rinoceronte Cacareco ou no Macaco Tião, mas o ora eleito fala e começa por desmoralizar contundentemente o Congresso.
A força cívica do voto no país desmunido se transforma na marca consciente e mesmo apaixonada da mudança. O Brasil instalado não foi à discussão, afinal, de projetos alternativos, mas concentrou-se, prioritariamente, no plebiscito, pró ou contra Lula. O sufrágio grotesco, senão exótico, entretanto, abre o caminho para todas as passividades e desinteresses pelas instituições nacionais. A iniciativa dos Presidentes do PFL e do PSDB, querendo fazer da OAB a polícia da polícia, olha para os mesmos caminhos do golpismo moralista.
Corrupção. O teor do novo Congresso não autoriza a qualquer reforço da nossa consciência republicana. Mensaleiros e sanguessugas se reelegeram, em proporção alarmante, e o impasse sobre as suas cassações deverá paralisar o começo da nova legislatura, ou desmoralizá-lo, de vez. O debate do segundo turno dificilmente sairá do pano de fundo da corrupção, tanto quanto o denuncismo sempre esgota os seus trunfos no primeiro ataque. A réplica, do lado governamental, serviu para associar o voto em Lula à quebra do modelo liberal para após a saída do desequilíbrio da economia brasileira, diante da lógica das globalizações. Não a ponto, entretanto, de cobrá-la, de vez, após a vitória. Vamos ficar, por enquanto, na onda da primeira mobilização, a só aumentar a responsabilidade imensa do segundo mandato. De um Lula a formular uma nova esquerda, enquanto é tempo, antes que viremos o país dos Clodovis e do óbvio do mesmo, irrepreensivelmente passado a limpo.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 20/10/2006