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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Candido Mendes de Almeida

DARCY, A FAÇANHA ORGIÁSTICA

DARCY TRIUNFANTE

Iniciei o Armagedon de cimento, rematado na Apoteose: a procissão para os dias únicos e os barcos de luz. Fiz a biblioteca inumerável, a da referência e da documentação. Sem face, sem crônica até, só com a lenda, entronizei o Zumbi, benfazejo e enorme. Triângulo na acrópole do Rio de Janeiro, e do resgate do Centro, pontos cardeais do conhecer e do celebrar. Inspirei os Cieps no denodo dos velhos olhos de ver a Educação Brasileira. Pratiquei a pólis nas artes do poder: as difíceis do retorno de 1964, do reavivar as marcas do povo e seu lanho. Procurei o pacto primeiro, do legado do grande suicida, a não poder ser, de novo, o do PTB. Ganhei para Leonel Brizola, em processo de destreza e de vitória sobre os simulacros, a sigla de sua verdade e da saga viva da volta.

Depois da purga de razão armada, de 1964, coube a Darcy no exílio o Continente todo por mensagem, na descoberta errante, antes do outro suicida, formador da consciência do Hemisfério, o de Salvador Allende. Começava pelo Uruguai, pela Venezuela e pelo Peru, de Velasco, e do empenho menino ainda de um nacionalismo, que reencontrava lá os nossos tenentes de 1922 e a reforma agrária ao lado do controle do petróleo inesperado.
   
DARCY DA TRISTE AMÉRICA LATINA,
EXPULSO DOS SERTÕES DO POVO
   
Rachada a América do Sul, no projeto histórico, que palmilha Darcy, triste da catástrofe mansa e da destinação interditada. Aprendeu-a o novel acadêmico, quiçá no mais fecundo dos exílios de 1964, da experiência inédita para nossa vida cívica, dos ceifados na flor das quarentenas – quantos Celsos Furtados? – e da plena maturação da sua vida política. E avanço dentro de si mesmo, esse, do Senador da “carta” e das imaginações, de história partida, de desrumo e em recaminho a saciar-lhe a gula de miradas, e a encontrar a civilização cigana, que só paira e não se finca. Nossa América Latina, e seu processo, que descreveu como quem o funda, a espera e reespera de um querer cada vez remoto, no seu último verrumar: o do panteão que o celebra na Pauliceia, experiência arteira de um arcano, senão já de uma arqueologia de futuro.

Como acompanhar nosso condestável, do gozo cívico e da fundação da brasilidade, dos Espinhaços às Brasílias, da épura da utopia e das peles do índio, a do populismo da primeira jaça, ao cristão errante da perdição das ameríndias, à voz do povo canalha, do Brasil bem-educado e dos insossos reformismos, da utopia corrosiva da universidade, a de Brasília, ou do Milênio, do aprendizado para a morte, e o luxo do encantamento, quando lhe colhe a Academia – no tríptico de seu desabuso criador, sob o pretexto do romance – na anábase – a do progresso de fundo não da cronologia – do O Mulode Maíra e do Migo?

Por todos estes fazimentos, cresce Darcy, no salto excessivo de quem se beneficiou – vamos à Toynbee – do aguilhão para a história maior dos homens, o da prova da saída e do retorno; do exílio, e da morte entrevista. Darcy, expulso para o aprendizado das assincronias de nosso tempo; para o refugo, na escala certa, do que poderia ainda o País enorme, fascínio por Juscelino, se devolvido a seus sertões de povo. Pressentiu-o, no corriqueiro da desolação de sua Montes Claros, ou do Mangueiral, tão esperto para o melhor civismo: o caseiro da mãe professora, de D. Fininha e do contágio mais perseverante da cartilha e do nosso bem-querer de Nação. E para dentro, depois do fascínio de Carlos de Campos, em Belo Horizonte, ou da província da USP, da Medicina já ruída pelo Romance inacabado, pela Antropologia como primeira pele, a que Darcy vai a palmilhar a nossa História frustra, pela mão premonitória de Pierson e Balthus. Mas não é na trilha do primeiro resgate, mesmo fosse o de Rondon, e do nosso maior salvacionismo laico: o do remontar, aos rios do Engano, do Desencontro, ou da Dúvida. Rente aos telêmetros e ao telégrafo, o Brasil de dentro de Darcy é o do batelão do opróbrio do comprador; dos espelhos e torpezas da escravidão do sal, e do querosene, na troca das libras de carne do seringueiro e do provedor de pele de lontra ou suçuaranas. Ou o país das novas donatarias, possuídas antes de rasgadas na selva, pranchadas pelas teleobjetivas do avião da grilagem, e das novas sesmarias, ferradas no olho.

Não vai também Darcy ao país urbano, sem que já o reesquadrinhe e o corte, no risco da universidade bravia, fora do trivium ou do quadrivium – sem que desdoure entretanto da oferta de teologia – no aprendizado da difícil e machucada coisa nossa. Saber em março aberto, e terra escapada, ao país do rondó, de suas elites e jubilações. Saber do povo, a recosturar-se, depois da espada da carta-testamento, no empenho da fala-desforra, desforço e assombração de Jango e do Chefe da sua Casa Civil, no comício de 13 de março.

DARCY, DA FAENA E DA FESTA
   
Abortava-se a história imediata, mas não o seu largo. No compasso já a pressentir a nova dimensão, volta-nos antes Darcy, a descer do avião na trégua estreitíssima do governo Geisel, e pela promessa de Golbery do Couto e Silva, a desembarcar no Rio para a operação salvadora, de plantão policial à porta do quarto do hospital, das cassetes de ouvido, em que o repertório de Bach a Mahler e a Villa-Lobos prenunciava outro largo da meditação, a libertária de Alceu. Nas semanas da morte plenária, na vigília, compunha-se das mesmas músicas, frente à faena, pauta aberta, didática e divinatória da cabeça. Adivinhava-se, na Beneficência Portuguesa, a nova perspectiva da biografia: a da tarefa que nunca acaba, da vida à prova, em manifesto e desvelamento. Era esse o caminho da ascese contra o seu rito; da fuga trabalhada à morte, avisada sem as convalescenças flébeis dos grandes tísicos da Literatura Brasileira, que Nelson Rodrigues resgataria do “Pneumotórax”, e da ainda ingênua pungência, de Álvares de Azevedo e Manuel Bandeira. Retorno esfuziante é este o de Darcy, visitado, já de posse do amestrar prodigioso do viver, sentando maravilhas, primeiro o egrégio cidadão da nossa festa, a reinventar o Brasil da sua grandeza. E peregrino, sempre, na parceria estrita, que pede o que é diálogo para ser viagem; companhia para ser vigília; ponta de dois para ser chegada. A de Anísio e Darcy, a de Brizola e Darcy, a de Oscar e Darcy. Pares de selvagens utopias, a querer o chão para merecer o espelho, de assentada. Ou da localização da subjetividade brasileira pelo que seria plantada a pique e sem precedentes, a Universidade de Brasília. Do retorno sem sebastianismos, do populismo de fundo, na brecha de Vargas, não nas nostalgias das diásporas, com padrão e posse da esperança imobilizada no Comício de 1964. Do marco da construção do nosso espaço, no casto risco do Homo faber para a espera do Brasil do silêncio, nos plenos e vazios opulentos do barroco proletário, e da arquitetura de Oscar Niemeyer, para outros tempos do homem.
 
A volta, de vez, é de Darcy, a da persona livre que se pensa como desabusada, porque libérrima, seduzido sedutor.

Só amadurece uma cultura quando, de fato, se ganha o teatro da subjetividade; quando se decanta, do Romance, da Biografia ou do imaginário de fortuna, o que fica do homem, para o retrato do Brasil; o que vai às simbologias explícitas; ao choque de corpo inteiro de introspecção e revelação. No que a nossa Cultura se funda, da punção de seu inconsciente coletivo, desbravou-nos Darcy pelo narcisismo assumido e o projeto orgiástico.    

DARCY, O BOCA DO INFERNO E O PELINTRA
   
Devemos ao Senador-Acadêmico, nada posto em sossego, talvez a perturbação mais sistemática das figurações do Brasil da convenção e da mímesis. Refugou o primitivo intocável, como o revolucionário prosélito. Descolou-se da borra do nosso mesmo e da construção de seu refugo no bem comportadinho das esquerdas, da servidão dialética. Foi Darcy ao veio mais fundo e raro para o seu dizer de fundação. Recuou, na colônia ancestral, a Gregório de Matos, o “Boca do Inferno”, em que a ironia é o primeiro esbravejo do civismo indignado, e o vulgar é só a sua retórica. Serve como deliberada pantomima ao resgate do sério, perdido pela infinita contrafação da literatura cortesã. Esta, a força de retroz da história dos Chaucers, dos Mallorys, dos Rabelais e dos Aretinos. Gregório, o Chulo, é também o épico primeiro de nosso Nacionalismo, na sua Salvador, prisioneira – viu-o tão bem Alfredo Bosi – da “máquina mercante, que em tua larga barra tem entrada”. No rasgo mais que estrago, Oswald de Andrade caminharia para o anedotário, que trai ainda o modelo e sobrevive na pelintragem, tão aos trinques da metrópole, na sua amestrada negação. Mas a preparar de qualquer forma a effrontérie – intraduzível desvelar-se – que nos dá Darcy, sem a ética do deboche, ou da verrina de seus predecessores. Do “Boca do Inferno” e do “Pelintra de Salão”, vamos à pajelança; do escárnio ou da piada metódica à apostrofe encantatória.

DARCY, IRMÃO DE ROUSSEAU
   
Mas demora a grande iniciação. Chega-nos pela mediação das etnologias, para apossar-se da cultura inventora. Colhe-a Darcy no aprendizado do mito para destampar os seus fazimentos. Lévi-Strauss foi ao imaginário indígena à cata do enlace mesmo da vida, suas filias e racontos. Sobretudo à sua ordem intransgredível. Foi, nosso novel acadêmico, à mais antiga, a da nossa celebração rebentada em festa, argúcia e castigo do explorador/provocador, patência tão didática quanto insuportável: porque vai ao arcano e só o fixa, confunde os velhos interditos com as suas meras contravenções: a da explicitude da sexualidade, do apoio desbragado ou da confissão, ainda como pele do anúncio.
 
Protagonista fundador do nosso onirismo, de ação e mudança, Darcy exorciza-se na queima daquela primeira derme, a capa índia do Pindorama, dos Kadiveus, dos Kaapor-Xavantes, dos Baroros, das exéquias triunfais. Sai do abraço mortal entre o preservacionismo – confundida a cultura morta com a intocada – e o assimilacionismo de que só se escapa para o retorno impossível. Seu mito mais rico é talvez o deste aviso de que não há salvação na fuga inútil: a da tribo determinada a fugir do beijo da morte dos brancos – os epexes – no Iparanã, e da tentação dos donos dos espelhos e instrumentos supercortantes. A se despojar da marca mas a buscar os metais, as tampas de cerveja, as garrafas, os cacos fabris, as ferramentas por mais que inúteis, os anzóis entortados para, de mão em mão, em novo nomadismo encantatório, passarem de supremo modo de troca ao de nosso mais pungente “cargo cult”. Claro, fica-nos, no legado das políticas públicas de Darcy, o primeiro grito, a formação das reservas indígenas. Mas, quando se debruça sobre os “Kadiveus”, vai se plantar sobre o seu “Exercício do Saber, do Azar e da Beleza”. Não é depósito de memória o que busca nosso etnólogo heterodoxo, mas o protagonismo do ser fundante arremessado em chão de risco. Desempenho sublevado, nem submisso à evocação piedosa, nem à defesa dos purismos recuperadores. Impele-o a intuição do “ser brasileiro”, fora do repertório do colonizado e também de sua antítese educada. Pois que há uma disciplina – a da espontaneidade – do selvagem a se reencontrar depois da primeira inocência. Opulência dos índios brasileiros de Ruão, e seus penachos, ao deslumbre de Montaigne, ao que a História só suporta como aprendizado, o contrário da domesticação: o que faz de Darcy irmão de Rousseau muito mais do que Flaubert, na proposta da Educação sentimental e das transformações entre o imaginário e as convenções do imaginário.  

DARCY, BICHO-CARPINTEIRO

Didático, agônico, Darcy é o senhor da pergunta: como podemos fugir ao prosélito, sem uma proposta radical de desvelamento? A que servem seu narcisismo assumido e a orgia, sábia e feroz, de seu projeto? Pajé, devorador de arcanos ou, ao contrário, seu troféu exemplar? Guie-nos o flagrante final do herói temerário, nada Sísifo nem Atlas, a livrar-nos do nosso nativismo mitológico, contaminado pela imitação súcuba; pela treta dos Macunaímas inutilmente espertos ou, no tributo maior de uma enfermidade metafísica da cabeça, nossos panteões doentes, de antropomorfismo mutilado ou carente, dos Sacis e Caaporas. Outros são os bichos-carpinteiros esfuziantes de Darcy, a desarrumar o país da mímesis; das mediações cada vez mais fáceis; da anestesia do implícito ou do crítico, da falta do susto e do escárnio, indispensáveis a abrir-nos a boca para a boa gula do espanto. Perde Darcy as suas peles, como a erosão dos anéis da biografia. Não são cíclicos, mas pátinas infinitas em que o condestável do gozo e da festa escapa, órfico, às duas vozes do imitador e do replicante; do retrato do Brasil de Paulo Prado, ou da pobre antropofagia da Pauliceia, em 1922; do contínuo assumido de experiência só não desesperada porque vertida à ascese da festa, ininterrompível, e do ir adiante. Nesses tempos nossos, do que engravidamos de história “para nós”, a fundação é toda a tarefa de sair do espelho, trabalho de Hércules em que o dar conta custa menos que o contar; a lógica do desempenho prevalece sobre as razões do agir, o viver sobre a imagem e o fazimento sobre a delectatio da proeza, de Darcy rompante, panpolítico a contagiar e encantar tudo que toca, em perseverante maldição.

Darcy afinal, o da maturidade, quando só deveriam começar os romances – o Darcy canônico do O Mulo, de Maíra, e do Migo, redundantes como solares, na metódica expulsão do eu magnífico, sem conectivos tal como não há tramas nem novelas na nua romanza nunca.

   
ORGIA E PROGRESSO
   
Mas a chegar lá venha-nos, de primeiro ainda, a busca dos olhos de ver, para além das escamas do real, a fenomenologia do processo brasileiro, a seus trancos e barrancos. E o de Darcy o ideológo, preso sob palavra, ao mais restrito dos clubes do pensamento orgiástico: o da dissecação da utopia. Mas a sua não é a de Morus, nem a de Campanella, nem a de Rabelais e, mais exigente e formidando, a de Swift. Não se ubica o exercício da impossível racionalidade do convívio dos homens em Darcy, como quer o topos vagante, a never never land; as ilhas afortunadas, as paliçadas do futuro ou a terra incógnita. Sua é aquela terra sem leões porque placentária. E nesse exercício do seu projeto orgiástico só o pleonasmo cobre a nudez da vã malícia, a da verdadeira ideologia ao falar-nos, como de incestos, na inocência arrebatada ou da fábula perdida. Ser de manifesto, porque de utopia, Darcy não fugiria à grande tentação da explicitude: o do futuro feito ordem, a ordem feita, precisa e exaustivamente, organograma. Que país é este, como nos perguntava, em 1969, o tenebroso Presidente, senão o que deglute os calibãs, para dar vida aos cunhambebes e tuchauas? Nossos, de vez, o estado como as estruturas do mito que não mente; “das fratrias do poder e gozo, do séquito dos passistas, mães de santo, futebolistas, folcloristas, beletristas, imaginistas; dos cardeais da cor, dos colégios de magistrados e do imperador impoluto, maduro, belo, gordo, apetecível – olhos gazos – surdo-mudo?”

Jamais teremos o que a pobre razão pede, como a biografia de Darcy, ou muito menos as suas memórias. O inventário e o portulano aí estão, a tornar facílima a tarefa dos historiadores ou dos discursos sobre Darcy, a partir da sebenta e do ementário das datas; dos florilégios. Só em um ano entre os seus setenta – de 27, antes da leitura do ano seguinte de “Reco-Reco, Bolão e Azeitona” – não existe, pelo próprio herói, dado do seu longínquo ser de crônica, e não de ser no mundo. Nem de que deixará para qualquer outro, senão para o próprio, a fita perenemente regravada da oração junto ao túmulo, feita pelo próprio morto. Ou o outro louvor da Academia: o que jamais ouviremos. É esta verdade sua, sim, e do que colhe, afinal, como o último desvelar, volúpia do que cantem ainda as armas ou bordunas, do orgiástico varão assinalado.

A CONFISSÃO PLEONÁSTICA
   
Peles, pátinas vem-nos Darcy ao gatilho do dizer a que serve de armadilha à trilogia dos romances, e em tempos orgiásticos insubstituíveis intermutáveis o da finta, no O Mulo, da imolação em Maíra, da entrega no Migo. E em tempos orquestrais, insubstituíveis e intermutáveis, canônicos: o da confissão, o da missa e, em última regra, a do tempo fraturado, e da composição aleatória ou do eu repartido, e do que dele queira se apossar o leitor. Malicioso, Darcy pode distanciar-se na imagem de si mesmo. Mas sabe que dela é prisioneiro, do lado da sideração. O que escreve é charneira do debruçar-se, nunca do tomar distância definitiva. Tal como o contexto objetivo é varadouro, relógio de horas – a de qualquer divisão de seus capítulos – mas volta sempre, sem ponta de fuga. É por isso mesmo metodologia da enajenación, na boa abordagem mística, da transfixação e do transbordo. Mas amarrado a uma enorme e segura metodologia do desvelamento. O despegue do O Mulo pelo modo da confissão, remetido ao eu de escuta do outro lado, convidado de pedra, que se interpõe à queda direta nas gerais do público. Nela vai o desgaste do eu mais antigo de Darcy. O do Mangueiral, ritornela dos grandes sertões, no mundo caboclo das altas gerais do Espinhaço e do Jequitinhonha, convívio de muares e da gente, coletivo final da tropa e dos eus grossos da subjetividade, esfolhada, ainda não em purga. A vida exposta sem perdão no seu símbolo, senão no esconjuro, viria com Maíra, rasgado o ser transeunte, de infinidade mal suportada; do absoluto exaurido, cansado nas suas metamorfoses e nas suas onipotências, fábula swiftiana, de um “ex-maquina” ilimitado, de alter ego e ordenança, de Maíra e Miruca, infinitamente encarnável e em refeitura. E o que nos diz Darcy, meta-Isaías, o herói do retorno frustro e do céu vazio. 
   
A EDUCAÇÃO PARA A MORTE E AS GERAIS
   
No escape de nosso seduzido sedutor para o reencantamento, salva-lhe, como fio de Ariadne, o narcisismo: o reencontro do outro dentro dele, Darcy, o final e único possível, o da cissiparidade bacteriana, ou do Migo, antes do eu, a de Darcy, afinal Ageu Regueira. E ser fractal o desse desvelamento senão da telescopagem. Não do que sobra, mas o que se cumula, exorbitante. Literatura sincopada de fechos, como quem volta a encerrar o demônio, no seu receptáculo e no chiado impaciente dos superlativos. Nem um carpe diem ovidiano, mas o amor de encontro, como de partida, sem vigília nem sobretudo nostalgia. Enfrentamento, o do triste tristíssimo em que só o raconto biográfico pode flagrar a velhice – a do venoso pé de Nava – a do ser em desfazendo-se, na anamnese, desses segredos dos mineiros das “serranias demais”. De Nava, e Darcy, tapando os horizontes, para que melhor desponte o retrato insuportável, o da parede percuciente de Itabira. Não é outro o que perpassa o nosso senhor da lúcida chegança ou de sua Estela, do sortilégio sem retoque, que se quer para além da graça, no jamais posto em sossego, ou do clinicamente conformado, num contingente tão sagaz quanto da mais fina entrega à corrosão do absoluto: a dos saberes de Montaigne ou do Zenon de Yourcenar nos deitas exatos – aguarrases – no leito feito da Oeuvre en Noir ou nas colunas de leitura de Darcy escandido no seu livro, pedra da roseta, para o eu do Mangueiral; do fraque do “quai Voltaire”; ou do “metro” do Chatelet; do cura, do Canuto e Uriel; de Ageu Regueira; varado que mineiro é das suas alterosas; do chama a gente e vai andando, nada eu de Psicanálise, de memórias, de currículos, ou de bas de page. Constelação sim, a do reino mais o rei. Na Academia, sua Casa, sua pena, Darcy Ribeiro.

15/4/1993