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Genocídio e evidência

 

Na semana passada, participei em Jerusalém de um seminário internacional sobre imigração e cultura. Tema importante, do ponto de vista literário, sobretudo em um país como o Brasil que é um verdadeiro melting pot, uma mistura de etnias, de religiões, de tradições. Não é de admirar que os imigrantes tenham papel destacado nas obras de nossos escritores: os alemães

em Graça Aranha, em Vianna Moog e em Josué Guimarães, os espanhóis em Nélida Piñon, os italianos em José Clemente Pozenato, os portugueses em Ana Maria Machado, os libaneses em Milton Hatoum, para ficar só com alguns exemplos. De outra parte, a questão dos imigrantes tornou-se dramática em nosso mundo. As ações repressivas desencadeadas nos Estados Unidos (país que aliás cresceu graças à maciça imigração) e na Europa (que forneceu boa parte desta maciça imigração) são uma evidência disso. O fluxo migratório nunca terá a fluidez dos capitais que com extrema desenvoltura cruzam fronteiras, mas deveria ser olhado com mais compreensão e tolerância.

Israel mudou muito desde a última vez em que lá estive, há 10 anos. O crescimento econômico, que oscila entre 4 e 5% ao ano, é visível nas excelentes estradas, nas construções que brotam por toda parte, nas indústrias, nas universidades. Há muita coisa nova para ver, entre elas as instalações do Iad Vashem, instituição dedicada à lembrança do Holocausto. Era basicamente um arquivo, com milhões de fichas, de documentos. Agora, existe ali também um excelente museu dedicado ao genocídio nazista. Que não foi, e isto a exposição o demonstra perfeitamente, uma exclusiva matança de judeus. Na verdade, as primeiras vítimas foram retardados e enfermos mentais, pessoas consideradas “dispensáveis”. Depois, outros grupos foram atingidos: comunistas, homossexuais, ciganos, poloneses, russos. Mas os judeus foram, indiscutivelmente, o alvo preferencial e a exposição mostra com que determinação e com que eficiência os nazis perseguiram esse objetivo. O museu estava cheio de visitantes, especialmente jovens, e não era difícil perceber a angústia e a revolta em suas faces.

Agora, vejam a coincidência. No avião de volta, e na falta do Correio Braziliense, peguei uma revista para ler: era a Time de 12 de junho. Na seção Notebook, que coleta frases recentes e significativas, havia duas declarações. Uma era do Papa Bento 16, quando de sua recente visita ao campo de extermínio de Auschwitz: “Num lugar como este, as palavras fracassam. No final, só resta o silêncio – um silêncio que é, por si próprio, um emocionado grito a Deus: por que, Senhor, permaneceste em silêncio? Como pudeste tolerar tudo isto?”

A declaração seguinte era do presidente iraniano Mahmud Ahmadinejad que, como se sabe, recentemente rotulou o Holocausto como “um mito”. Um repórter da revista alemã Der Spiegel perguntou se confirmava esta posição. Resposta de Ahmadinejad: “Só aceito algo como verdadeiro se estou convencido a respeito”.

Basicamente, uma maneira de reafirmar a posição anterior. Mas vale a pena examinar a frase. O presidente iraniano poderia ter dito, como um cientista o faria, que aceita algo como verdadeiro se existem evidências objetivas a respeito. Evidências, a propósito, não faltam no caso do Holocausto. Ali estão os números, ali estão as horripilantes fotos. Números e fotos coletados pelos próprios nazistas que, como se sabe, prezavam a ordem e a organização e que precisavam documentar o extermínio, até como motivo de orgulho. Mas, a julgar pela declaração do presidente iraniano, isto para ele é irrelevante: ao fim e ao cabo é a sua decisão que pesa.

Não é uma posição nova na história da humanidade, nem é Ahmadinejad o primeiro a externá-la. Sabemos a que tipo de distorção pode levar esse tipo de raciocínio. E, como nos lembra o museu do Holocausto, precisamos ficar alertas para as conseqüências que daí advêm: quando se nega a realidade, tudo é possível, mesmo os maiores absurdos. Deus, cujos desígnios são insondáveis, pode ficar calado. Nós temos a obrigação moral de falar.

Correio Braziliense (Brasilia) 23/06/2006

Correio Braziliense (Brasilia), 23/06/2006