Quando alguém se dispõe a ler um texto – literário ou não – está longe de imaginar o quanto de armadilhas ele encerra no processo que vai da fase de elaboração do autor, passando pelo editor, pelo preparador de texto, pelo revisor e compositor até chegar às mãos de quem vai lê-lo, na convicta esperança de que o que tem na mão reflete a vontade real e final do autor.
A Antiguidade aos tempos modernos a experiência editorial nos tem mostrado que esse texto real e final passou por tantas peripécias que se teve de constituir uma disciplina cientifica. Esta disciplina que se chama hoje crítica textual, e também ecdótica, embora muitos autores nem sempre aceitem os termos como sinônimos, atribuindo-lhes tarefas diferentes que não cabe aqui deslindar. Assim, compete à crítica textual a reconstituição de um original perdido, ou de um texto considerado fidedigno, com base na tradição manuscrita e impressão direta ou indireta da obra, conforme as exigências de uma metodologia cientifica.
Os primeiros passos da disciplina ainda incipiente foram dados pelos filólogos alexandrinos do século
Depois, veio o trabalho dos humanistas e dos renascentistas, que tiveram de lidar com os abundantes manuscritos gregos e latinos, provenientes do Oriente. Por fim, a filologia do século 19 deu à disciplina a feição que hoje reconhecemos, acrescida pela contribuição dos estudiosos modernos que atuam até nossos dias.
No Brasil esses passos tiveram desde cedo ressonância, empiricamente, por exemplo, com Sousa da Silveira e Alberto Faria, e, depois, de maneira mais sistematizada, com o Padre Augusto Magne, Celso Cunha, Antônio Houaiss, J. Galante de Sousa, Segismundo Spina, Antônio José Chediak, Emanuel Pereira Filho, Leodegário A. de Azevedo Filho e Maximiano de Carvalho e Silva.
A pouca ou quase nenhuma preocupação de editores, às vezes bem intencionados, mas sem a devida preparação técnica, tem permitido correr textos da nossa literatura, dos seus inícios à atualidade, que, pela infidelidade da lição e pela corrupção do original, prejudicam o trabalho da critica literária, do historiador da literatura, do filólogo, do lingüista, do historiador.
Foi para dar norte mais confiável que se criou na biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, sob a direção do grande filólogo Augusto Meyer, a Comissão Machado de Assis, que deu um bom começo na fidelidade textual de poucos romances do nosso escritor maior. A ação da Comissão precisa ser reativada, mormente quando se aproxima o centenário da morte de Machado, em 2008. E o que se precisa fazer na obra de Gregório de Matos, dos poetas árcades, dos românticos, de quase toda a literatura brasileira?
Por tudo isto, fio muito oportuna a iniciativa da Academia Brasileira de Letras de oferecer à comunidade universitária, aos preparadores de textos, ao público interessado pela cultura e pela literatura e aos jovens que aspiram a um dia ser filólogos, o Curso de Crítica Textual, com enorme comparecimento, ministrado pelos discípulos de Contini, os professores italianos Maurizio Perugi e Bárbara Spaggiari, com larga produção cientifica no estrangeiro e autores da obra Fundamentos da crítica textual.
Maurizio Perugi é professor de filologia românica e ensina na Universidade de Genebra o francês antigo e a crítica textual, avançando no âmbito teórico e abrindo novas perspectivas no chamado método neolachmanniano.
Bárbara Spaggiari é professora catedrática de filologia românica com vários ensaios sobre latim vulgar e textos proto-românicos, lírica provençal, italiana, catalã e castelhana.
Com esse importante investimento cultural a Academia Brasileira de Letras tem a certeza de haver contribuído, mais uma vez, para o cultivo da língua e da literatura nacional, como reza o art. 1 de seus estatutos.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 28/06/2006