Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Invenção de Mundos

Invenção de Mundos

 

Guimarães Rosa disse com a sutileza das coisas apanhadas em sua simplicidade que as horas formam o longe e que a vida não tem termo real.


O longe está nas horas. A vida não tem um fim indiscutível.


O que Maria do Carmo, eu e os filhos temos constatado é que Marcantonio, assim como a neta Vytoria – nossas saudades sem fim – só estão longe nas horas da separação e que suas vidas nunca terminaram.


Se é verdade que seguimos os passos do que lembramos, o Brasil continua a seguir os passos de Marcantonio.


Vemos o que construiu e uma evidência se torna exponencial. Cuidou de viajar na esperança pelo fazer bem feito, não foi um cicerone do mirabolante. Construiu para ficar.


Marcantonio compreendeu desde cedo de que a sua missão haveria de ser brasileira e contemporânea, mas nunca para aprisionar os valores brasileiros ou para marginalizar outros momentos do processo de criação. Emocionava-se com Beatriz Milhazes, como com Kuitca, sorria para a arte do século XXI – sim ele era cidadão de um tempo a que não chegou – com o mesmo prazer com que acariciava o altar de S. Bento, em Olinda.


Sua visão ao intercambiar o que fosse de qualidade, percebeu-a admiravelmente Ileana Ceron, no texto esperto e investigativo com que enriqueceu o livro Invenção de Mundos.


De fato, Marcantonio superou realidades geográficas que sugerissem idéias de periferia por uma centralidade qualitativa.


Quando se perguntou “de que são feitos os dias?”, a inteligência respondeu: “Os dias são feitos de firmes desejos, vigorosas saudades, silenciosas lembranças”.


Mas é preciso completar: não se silencia a esperança.


Marcantonio não calava. Não confidenciava juízos. Dizia na cara. Com o carinho do agrado ou a dureza do reparo. Também não confidenciava afetos. Expandia o bem querer o quanto lhe apetecesse. De outra parte, não estava nem aí para a cordialidade supérflua ou o concessionismo ligeiro.


Muita gente ficou de fora do seu acervo. Ou por não se enquadrar no limite a que se propôs ou por perda de substância na trajetória do artista. Até depois de não estar mais conosco sofreu dessa incompreensão mesquinha. Em vida, sabia disso e brincava com os pais, citando Quintana: “Eles passarão, eu passarinho”. A mãe vê esses episódios com superioridade, já o pai, por vício do trabalho contabilizou tudo. Mas que esses passaram, ah! Estão passando, sim.


Nos últimos dias ocupo-me em reler a obra de Neruda e me recordar do que me contou Jorge Amado: certo dia chegam Zélia e ele a Santiago para visitar o compadre Pablo. Descendo do avião, vêem-no de braços estendidos e, dramaticamente, a proclamar:


- Jorge, não me pergunte por ninguém; morreram todos.


A morte apanhara os amigos de décadas.


Mortos Pablo, Jorge, Marcantonio também, vou encontrando o filho nos versos do chileno que, embaralhando as estrofes digo aqui, em louvor do filho que sangra no coração da gente todas as horas de todos os dias:


“Agora me deixem tranqüilo


Agora se acostumem sem mim


Vivi tanto que um dia


Terão que por força me esquecer


Porém porque faço silêncio


Não creiam que vou morrer


Passa-se comigo o contrário:


Acontece que vou viver.


Acontece que vou e que sigo


Deixem-me sozinho com o dia


Peço licença para nascer”




Proclamamos, daqui, Carmo e eu:


Você vai nascer, Tom querido, de novo, na ressurreição. Viver é preciso.


4/9/2006