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Euclides e a Amazônia

 

Em comemoração ao centenário dos trabalhos da Comissão de Reconhecimento do Alto Purus, dirigida por Euclides da Cunha, a Academia Brasileira de Letras (ABL) acaba de publicar uma nova edição do livro "À margem da história", em que outros países sul-americanos se conheciam e se desconheciam.


Fruto da lucidez de dois brasileiros raros - Euclides e o Barão do Rio Branco - a missão do Alto Purus abriu uma fase nova no entendimento de uma região que despertava - como desperta ainda - a cobiça de países estrangeiros.


Naquele momento era Euclides da Cunha representante do mais legítimo idealismo da República brasileira. Um exemplo disso é a carta que escreveu à "Gazeta de Notícias" em 18 de fevereiro de 1894, quando se opõe a declarações de João Cordeiro, senador pelo Ceará, de serem os presos políticos de então executados, como represália ao aparecimento de uma bomba na redação do jornal "O Tempo".


Diz Euclides, em determinada altura: "Confesso, Senhor Redator, que uma tal proposição, ousadamente atirada à publicidade, num país nobilitado pela forma republicana, deve cair de pronto sob a revolta imediata dos caracteres que, na fase dolorosa que atravessamos, tenham ainda o heroísmo da honestidade."


Aquele "num país nobilitado pela forma republicana" é todo o Euclides da Cunha. O espírito de liberdade, que a república pregava, estava em tudo de acordo com o tipo de inteligência lúcida que era a de Euclides.


O pioneirismo de Tavares Bastos, cujo livro "O Vale do Amazonas" foi publicado no mesmo ano do nascimento de Euclides da Cunha - 1866 - iria produzir seus melhores frutos com o assomar da República brasileira e através do entusiasmo idealista, inclusive no significado filosófico do adjetivo, dos republicanos.


A escolha de Euclides para chefiar a missão no Alto Purus revela a sabedoria administrativa de Rio Branco e o livro que Euclides se preparava para escrever sobre a Amazônia, "O Paraíso Perdido", deixaria de existir por causa de uma bala assassina. Mas o que escreveu ficaria, não só em "À margem da história", mas também em "Contrastes e confrontos" e "Peru versus Bolívia."


No livro agora reeditado pela ABL, surge a classificação do seringueiro. Se, em "Os Sertões", o nordestino era, antes de tudo, um forte, em "À Margem da História", o "seringueiro é, obrigatoriamente, profissionalmente, um solitário." Se, em Canudos, havia multidões, homens, mulheres e crianças por toda parte, na Amazônia dos seringais as pessoas como que sumiam no meio das árvores, ficando isoladas em pequenos grupos, ferindo caules e esperando que o leite se acumulasse.


De modo inteiramente diverso do que fora sua aproximação com o Nordeste, a Amazônia exigia festas religiosas diferentes, que Euclides descreve com a força de suas palavras, inclusive no mostrar a figura de Judas que, amarrado num barco, desce o rio, enquanto os seringueiros, com descarga de seus rifles, atacam a embarcação e destroem o símbolo detestado.


Por escolha própria, deixara Euclides de visitar a Europa ou de aceitar postos no exterior para ir ao encontro da Amazônia, para vingá-la, para resgatá-la. Foi com uma sensação de cientista messiânico, de profeta, que ele se dirigiu a uma região caluniada, e disto é sinal o trecho de carta que enviou então ao Rio de Janeiro e que Leandro Tocantins reproduz em seu livro "Euclides e o Paraíso Perdido": "... nada te direi da terra e da gente". Depois, aí, e num livro, "Um Paraíso Perdido, onde procurarei vingar a Hiléia maravilhosa de todas as brutalidades que a maculam desde o Século XVIII".


E Gilberto Freyre vê, nessa busca do maravilhoso existente na enxuta realidade, uma fuga ao realista rotineiro: "No retratar o visto e o observado, é que deixou, muitas vezes, de ser simples fotógrafo, ao modo dos realistas convencionais, para buscar, em homens e paisagens, o mais real que o real."


A Amazônia, conquista portuguesa legada ao Brasil, provoca paixões, cobiças e muitas religiões: católicos, evangélicos, protestantes de várias denominações se misturam ali com uma nova religião ecológica brasileira, a do Santo Daime, baseada no chá da região, no pregar, discutir e viver a empolgação do "Paraíso Perdido" ou, no título de Alberto Rangel, do "Inferno Verde".


Tento imaginar o livro final e definitivo que teria escrito Euclides da Cunha sobre o Amazonas e que Antônio Conselheiro poderia ter surpreendido agindo sob a verde nave de suas árvores. Só pensar nessa possibilidade antiga faz-nos lembrar a severa e densa importância de Euclides da Cunha na cultura brasileira.


A nova edição de "À margem da história", sai sob a égide da Academia Brasileira de Letras, com apresentação de Alberto Venâncio Filho, projeto gráfico de Victor Burton, produção editorial e revisão de Nair Dametto, editoração eletrônica do Estúdio Castellani, catalogação na fonte da Biblioteca da ABL, capa em montagem sobre mapa do Brasil com Euclides por Guimarães.




Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 20/12/2005

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 20/12/2005