Não chegava a ser bonita, a voz não era lá essas coisas, o repertório tinha altos e baixos, depois de certo tempo mais baixos do que altos. Como artista de cinema, aceitou a caricatura que bolaram para ela, com uma ou outra exceção, como aquela esplêndida Fifi que fez no pior filme de Groucho Marx ("Copacabana") e um dos piores de toda a cinematografia mundial.
Mesmo assim, foi e continua sendo uma das personalidades mais importantes, senão a maior, do nosso meio artístico. E merecia o livro que Ruy Castro acaba de lançar, um nutrido volume que ultrapassa a categoria de boa biografia, para ser, como é, um formidável painel de uma época, tanto no setor nacional (rádio e disco) como sobretudo no universo do cinema norte-americano, esquematicamente, de 1939 a 1955.
Conhecida e reconhecida sua competência para biografias (Nelson Rodrigues e Garrincha), Ruy tem a obsessão pelo rigor histórico, mas não se limita aos fatos que apura. Dá opinião, tanto no detalhe como na panorâmica. Daí que Carmen teve afinal a sua história contada e comentada por um especialista.
Pela atração que exerceu e exerce até hoje, ela já tem uma bibliografia respeitável. Lembro o livro de Cássio Barsante, valioso na parte iconográfica, mas prejudicado pela paixão que Carmen provocava nele -o que aconteceu com outros autores e cineastas.
Ruy vai fundo na vida e nos feitos de seus biografados. Não se limita ao solo de cada um, mas ao conjunto do tempo e modo. Seu conhecimento do mundo cinematográfico de Hollywood, da discografia nacional e internacional é impressionante.
Disso resulta uma enciclopédia não somente para conhecer um momento de nosso tempo. Vai além: tendo como núcleo a vida de uma mulher gloriosa e sofrida como Carmen Miranda, ele penetra nos subterrâneos do ser humano em luta permanente para ser humano e -perdão pelo pleonasmo- para ser.
Folha de São Paulo (São Paulo) 31/12/2005