O senador Bornhausen vem de conclamar os cidadãos a pedir o impeachment do presidente. Apela ao precedente de Collor. Mas, ao mesmo tempo, reconhece a inviabilidade de que, dentro do quadro partidário, a iniciativa possa ter qualquer chance. Esgota-se o maquinário da oposição no Congresso, tanto à falta de provas quanto à exaustão da crise.
O furor contra o presidente já passou às justificativas fantasiosas, senão delirantes, e a última investida sobre o "dinheiro de Fidel" soa ao "ouro de Moscou", do fim da guerra fria. A CPI do "mensalão" ganhou uma sobrevida de horas, para tentar ainda sair da frustração oposicionista de não poder indicar nenhum suspeito às sanções parlamentares.
O que fica claro é o quanto a crise exauriu o seu potencial de desestabilização política imediata no País. Da mesma forma que, mesmo mantenha como refém o presidente, não logrou fazer dos seus contendores os beneficiários de um novo tempo, merecedores de uma confirmação eleitoral. A crise não discerniu os seus protagonistas, nem os cantos da pugna. Assim como se recupera a popularidade de Lula após o nadir de setembro, para o "país-bem" são ainda insuspeitas a profundidade e o ímpeto desse retorno do presidente ao favor eleitoral. E não o capturou, naturalmente, a oposição como seu desafiante, nem logra ela se dissociar dos planos mais obsoletos do velho Brasil, alvo da lógica mais corriqueira e inescapável da mudança. Beneficiou-se das remoções grotescas de cena, dos Severinos, da clientela encardida, tanto quanto as revelações de Marcos Valério ou de Daniel Dantas não permitem que a polarização entre o PT e o PSDB, no outro extremo das polaridades, se leia como uma forra da ética política ou de um retornismo do tucanato por meio da pretendida devolução do "bom senso" ao governo brasileiro. Lula não cresce nesse cenário apenas pela inércia avantajada à crise, mas pelo delineio obscuro do antagonista, quando o gênero de conflito como levantado por Roberto Jefferson deveria mostrar um vingador na plenitude, logo, de seu retrato falado. Não existe antagonista, e os claros, na oposição, ainda pioram pelo nível de engalfinhamento entre os herdeiros presuntivos de um alegado fracasso do governo petista. É por percussão, pois, que o ir adiante, na maranha dos meados de 2005, criou o alçapão de atrasos repetidos na figuração do antagonista, tanto quanto o Lula dos últimos meses amplia o fato e o reconhecimento de sua resistência - esgotada toda a retórica do impeachment -, como reforça os trunfos para a retomada da adesão eleitoral. Ao efeito de inércia, soma-se o da possível intocabilidade da expectativa básica e dos tempos que inconscientemente já lhe foram outorgados pelo comportamento dos movimentos sociais e corporativos de antes da crise. O Brasil que saiu do silêncio para votar sistematicamente em Lula não é o do "tudo bem" ou da desmemória instantânea do País de todo o sempre. O enlace político dos recém-advindos ao poder marca-se pela moderação, ainda, da sua expectativa. Avançaram sem desanimo, disciplinaram-se na espera. As condições de acesso ao emprego, ao salário e aos serviços básicos mantêm-se em níveis abaixo das exigências usuais de um bem-estar coletivo. Mais também, ao se ter mobilizado o país excluído vem de par como capital antevisto de sacrifícios, de que só é fiador quem o pôs em moção. O tempo do último ano de mandato manterá intacto esse capital de base e um novo governo fluirá, de início, ainda da satisfação simbólica com o operário no Palácio. Nem o denuncismo, afinal, alinhou a marcação de fundo do país que se levanta e pede passagem. Ainda somos a nação da desmemória e do pano rápido, ajudado, agora, pelo Brasil dos cartolas, a remover a saineta dos "qüiproquós" do lacerdismo tardio. Fiquem, sim, as investigações da corrupção, efetivas, em que a Polícia Federal acompanha a democracia instalada e não o faz-de-conta do Congresso. O governo só tem a ganhar com o passo à frente: a oposição perde todo alvo para a derrubada, já, ou a prazo, do presidente. Desaparece, de vez, a velha retórica, em que fez verão a crise de sempre.
Só remanesce da crise o alvoroço velho - que vive da sua retórica crônica e, também, de sua saturação. O país que vai adiante sabe, por uma vez, que bruxas há, mas são sempre as mesmas. Superou-se a lógica do racha, embutida na passagem do Brasil a limpo. O que se nos abre é o de Lula depois de Lula.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 18/11/2005