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Admirável futebol novo

 

Sou craque do passado, como sabem os persistentes e pacientes leitores desta coluna. Hoje em dia nem as posições dos times têm mais nomes fixos e todo dia aparece uma especialidade como, vamos dizer, “ala volante avançado rotativo”, que ninguém sabe o que é. Comecei na ponta direita, mas minha única jogada era dar um chutão para a frente perto da linha lateral e sair correndo atrás da bola (eu corria bem, esse negócio de o capenguinha me pegar no calçadão é porque ele pega qualquer um), para ver se a alcançava e conseguia centrar. Logo me puseram na posição mais ou menos equivalente à de zagueiro hoje em dia. Eu era beque direito no time de Itaparica contra os veranistas, de inesquecível trio defensivo: Nego Tóia, Delegado e Chico Gordo. Delegado era este ex-atleta que lhes fala.


Vivi intensamente o que para mim são os dois instantes mais memoráveis do nosso futebol: a derrota, de virada, para o Uruguai em 50 e a vitória na Copa do Mundo de 58. Na primeira, eu morava em Aracaju e ouvi a partida narrada por não lembro qual locutor, nas ondas curtas do poderoso RCA Victor de meu pai, com “olho mágico” e tudo, expressão que não traduzo para as novas gerações de despeito mesmo, pois sou a prova viva de que o mal da nova geração é que não pertencemos mais a ela, esta é que é a verdade. Rezei o tempo todo e chorei no fim, como ouvia os locutores contando sobre jogadores e torcedores também chorando. Na segunda, eu estava em Itaparica e ouvimos a narração da partida no também poderosíssimo rádio Zenith da sinuca de meu finado primo Zé de Neco. Os suecos abriram com um gol de Liedholm - o odiado Lidirrólmi que a gente xingou no largo da Quitanda.


Mas aí o Brasil reagiu e ganhamos. Organizamos, não sei como, uma charanga e saímos pela cidade, tocando na porta de todas as casas. Como era época de São João, todo mundo tinha licor de jenipapo na cristaleira (novamente, não traduzo; estou ficando, como sempre planejei, um velho caturra) e a gente tomou um porre de jenipapo que deixou diversos sem poder sentir cheiro de jenipapo durante anos, para não enjoar. Entre estes estive eu, que acordei na praia, deitado com os pés na direção da água, a água da maré enchente já me chegando à cintura, no mar sem ondas do banco de areia que lá chamamos de “coroa”. Mais um pouquinho de licor e desconfio que teria me afogado, porque foi difícil acordar de todo e levantar-me.


Estive também em duas Copas, a de 86 e a de 94. Fiz minha sonhadíssima estréia como comentarista esportivo, à qual talvez dê continuidade na próxima Copa. Sou, portanto, ligado ao futebol, como a maioria dos brasileiros. Mas, como tudo mais, o futebol mudou muito. Há bastante tempo, por não gostar de tumultos e temer balas perdidas ou morteiros, desisti de ir a estádios, só vejo futebol pela tevê. Como eu, muita gente. Conheço vários que criaram completo pavor de ir a estádios, muito mais levando a mulher ou os filhos. E compreendo discussões até acaloradas, mas agora se mata cada vez mais gente por causa de futebol.


Comentei isto aqui outro dia e torno a comentar. Corre sério risco, numa cidade como Rio de Janeiro ou São Paulo, quem sair, mesmo que não em dia de jogo, com a camisa do time pelo qual se torce. Somos contemporâneos de acontecimentos antes inconcebíveis, como jogos sem espectadores, por causa da violência. E sabemos de jogos com arbitragens suspeitas e o espírito de diversão, brincadeira e alegria que cercava o futebol está indo embora. Agora mostrar categoria e curtir amigavelmente com a cara do adversário é considerado ofensa. Não é impossível que se crie um problema de segurança tão grave que o futebol só terá platéias vivas em jogos especiais, sem perigo previsível de conflitos e segurança rigorosa. E os juízes permanecerão diante de um telão, com replay instantâneo, para a correção de marcações equivocadas. As máquinas vão cuidar de praticamente tudo, como nos bancos.


Como tem ocorrido muitas outras vezes, quero escrever algo leve e ameno, pois houve um tempo em que havia espaço para uma certa alegria espontânea, mas não acho jeito. Agora, em mais um episódio de violência e estupidez, somos informados de mortes e de bestialidade organizada. O futebol está deixando de ser felicidade, emoção e sublimação, para ser motivo de ódios, agressões, assassinatos, linchamentos. Não sei a que se deve isso. Não é fenômeno unicamente nosso, como demonstram as famigeradas torcidas inglesas e muitas de suas congêneres também na Europa, mas acho que aqui é pior. Não só porque o futebol faz parte tão entranhada da vida brasileira como porque, pelo menos que eu saiba, não há tantas mortes lá fora.


Talvez seja mesmo o destino do futebol vir a ser um esporte basicamente para telespectadores. Já conheço muita gente que acha bastante melhor ver os jogos pela tevê. Há os repetecos tomados de vários ângulos, há uma proximidade que não se obtém no estádio. E não se tem que sair de casa, empresa cada vez mais temerária em qualquer cidade grande. E, mesmo quando o jogo só pode ser assistido por quem pagar pelo serviço, já existem os “clubes” de aficionados, todos com tela grande em casa. Reúnem a turma, cada um cai com uns trocados que juntos dão de sobra para pagar o jogo, levam a cerveja e se divertem em casa mesmo, sem gastar quase nada e razoavelmente (bem mesmo ninguém está) protegido.


Gostaria de ter isso na conta de puro delírio, mas creio que não é tanto delírio assim, ainda teremos os esportes puramente televisivos. Os estádios ou ficam vazios ou reservados para eventos especiais. Desculpem-me estar tão chato hoje, mas reitero que o melhor do futuro é que não estarei nele.


 


O Globo (Rio de Janeiro) 13/11/2005

O Globo (Rio de Janeiro), 13/11/2005