Cela do Batalhão de Guardas, aqui em São Cristóvão, dezembro de 1968. Joel Silveira e eu estávamos presos havia uma semana e eu começara a sentir uma falta desgraçada, não da liberdade, mas de um pouco de sol nos meus ossos.
Sentia-me apodrecer por dentro e por fora.
Todos os dias, o major Marsillac vinha conferir se tudo estava nos conformes dos regulamentos, demorava pouco, apenas para ver se não tínhamos nos suicidado com um lençol ou com a colher que traziam na hora das refeições.
Até que ele descobriu: Joel era sergipano, como ele, da mesma cidade do interior. Tornaram-se amigos, batiam longos papos. Com a intimidade nascida, Joel levantou o problema: eu precisava tomar banho de sol, direito garantido pela Convenção de Genebra a todos os presos do mundo, inclusive aos condenados à morte.
"O meu amigo precisa tomar sol", disse Joel. "A Convenção de Genebra...". "De quê!?", perguntou o major. "De Genebra", repetiu Joel.
Aterrado, o major olhou para mim. Ficou afásico: "Sim, sim, sim, de Genebra", e saiu para tomar providências.
No dia seguinte, logo após a caneca de lata ordinária com um café frio e ralo, o major entrou na cela, jocundo: "O comandante autorizou o banho de sol... uma hora apenas, no pátio do quartel...".
Havia gozação no modo em que me intimou a gozar aquele direito. Perguntei ao Joel se ele também não queria banhar-se de sol, beneficiar-se da Convenção de Genebra. Joel estava lendo "São Bernardo", fora amigo do velho Graça. Disse que não, nascera num lugar em que o sol queima até durante a noite, na infância tomara sol para o resto de seus dias.
Ao sair da cela, entendi a gozação do major: estava chovendo. Ele pensou que eu voltaria atrás, mas fui em frente. Tirei a camisa e encarei o pátio. Em algum lugar havia a frase em letras enormes: "A Guarda morre mas não se rende". Fiz o contrário: não morri e me rendi à chuva e à provisória liberdade.
Folha de São Paulo (São Paulo) 24/11/2005