Outro dia, comentando a autofagia dos intelectuais, não apenas em momentos de crise, mas sobretudo depois das crises, lembrei a onda que se criou contra Jean-Paul Sartre logo após a libertação da França. A ocupação do país pelos nazistas e o regime colaboracionista de Vichy já haviam feito vítimas na inteligência, mas nada comparável ao morticínio posterior, quando os intelectuais da França Livre comeram-se uns aos outros sob variados pretextos e ressentimentos.
O próprio Sartre foi suspeito de colaboração. Sua peça "As Moscas", sendo embora uma crítica ao nazismo, foi encenada durante a ocupação. Os censores alemães não perceberam o sentido da obra, mas a turma dos despeitados (que ficara em silêncio, esperando ver no que iam dar as coisas) caiu em cima dele, acusando-o de espião e "tira" dos nazistas.
Annie Cohen-Solal, em seu livro sobre aquele período, narra como as coisas se passaram: "Que espetáculo! Os intelectuais franceses agora se estraçalham, cada um tinha seu inimigo preferencial de quem queria se desforrar pessoalmente. Mauriac pedia a cabeça de Jaloux, Aragon queria que se fuzilasse Armand Petitiean". E, mais adiante: "O grande mestre dos expurgos foi Aragon. Se dependesse dele, seriam muito maiores, com uma exceção para os ex-colaboracionistas que aderiram ao Partido Comunista Francês".
O fenômeno não chega a ser uma exclusividade da França pós-Guerra. Na Itália, o próprio PCI expulsou e perseguiu, entre outros, um de seus maiores romancistas, Ignazio Silone, autor de "Fontamara" e "Pão e Vinho".
Como lembrei em artigo que escrevi recentemente na Ilustrada, o próprio Sartre foi chamado de "crápula nazista" por Maurice Thorez, o homem forte do PCF, o mesmo que apoiara freneticamente o pacto germano-soviético no início da guerra.
Por essas e por outras, nada como a liberdade que somente a anarquia nos dá.
Folha de São Paulo (São Paulo) 27/11/2005