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Presença da África

 

O livro de Raul Lody, "O negro no museu brasileiro", levou-me de volta ao tempo em que Zora e eu vivemos na África. Adido cultural em Lagos, então capital da Nigéria, lugar de cultura iorubá, de lá viajávamos para outras cidades nigerianas (Oió, Ibadan, Oxogbô, Edé), e no país vizinho, que então se chamava Daomé e hoje é Benim, onde eu fazia conferências (em Porto Novo, Pobé, Keto, Idigny, Cotonu, Abomei).


O caminho em direção a Keto, que percorremos várias vezes, nos levava também a uma aldeia chamada Idigny, onde havia as mais belas máscaras Gueledé de toda a iorubalândia. Um escultor, já idoso, chamada Simplice Ajayi, ali pegava no seu pequeno instrumento cortante, para trabalhar sobre a madeira.


Acabamos Zora e eu por reunir uma coleção de mais de 200 esculturas de madeira que, mais tarde, doamos ao Instituto que leva o nosso nome para nele ser instalado um museu de Arte Africana no Rio de Janeiro.


De vez em quando faço conferências levando comigo uma dúzia de peças, o que fiz, sábado último, em Ubá, minha terra natal. A beleza das máscaras de Simplice, juntamente com os símbolos de Xangô, Iansan, Oxosse e Oxalá, são de uma estranha e clara beleza: são peças que, na Europa, já foram chamadas de arte sacra da África.


Nas vésperas de levar um conjunto de peças a Ubá, recebo o livro de Raul Lody, "O negro no museu brasileiro", que estuda e situa os museus africanos existentes no Brasil.


Assim o Museu Câmara Cascudo, o museu inspirado em Gilberto Freyre, a coleção africana do Museu Nacional de Belas Artes, a coleção afro-pernambucana, do Museu do Homem do Nordeste, a Arte dos povos Bantu no Museu Paraense, o Museu Artur Ramos, o Museu Théo Brandão e o Xangô de Alagoas, as coleções afro-maranhenses (patrimônio dos terreiros mina-jeje e mina-nagô e das festas de São Luís), o Museu Afro-Brasileiro de Laranjeiras, Sergipe, o Museu do Ilê do Opô Afonjá da Bahia (dirigido pela ialorixá Stella de Oxosse).


De cada museu e coleção, dá Raul Lody não só uma informação cultural, mas também seu julgamento sobre as peças. Analisando as coleções da Fundação Gilberto Freyre, assim descreve peças de madeira e bronze: "São misturas de cenas sociais cotidianas em aldeias, são biótipos africanos, objetos de adornos corporal, conjunto do qual destaco máscaras bakunda ou makunda dos Lunda-Bachokwe".


As árvores-sagradas africanas aparecem em vários trechos do livro e neles há explicações que falam do sentimento do africano diante do mundo vegetal: "O vigor do verde está na árvore-monumento como atestado de tempo histórico, de África presente, de um afro-brasileirismo consagrado a certos espécimes botânicos visualmente centenários - árvores guardiãs dos terreiros, deuses fito-representados e cultuados pelo saber litúrgico tradicional".


No tecido multinacional brasileiro, a presença africana foi das que mais fundamentalmente nos tocou. O livro de Raul Lody vem dar um testemunho comovente e preciso retrato dessa influência que se estendeu por todo o conjunto social da existencialidade de nossa gente.


Com suas ilustrações, seus desenhos e seu bom gosto gráfico, Lody fornece a chave para muitas das nossas perplexidades diante da mistura cultural em que estamos inseridos e que tem servido de fundo para muitas de nossas ousadias em livros, músicas, roupas, hábitos, danças e na alegria de viver que nos distingue como povo.


"O negro no museu brasileiro: Construindo identidades", de Raul Lody, é livro de leitura indispensável. Nele está muito do que temos em nós e às vezes não sabemos. Edição da Bertrand-Brasil. Capa de Leonardo Carvalho com foto de Francisco José/Luma Fotografia. Ilustração do miolo do próprio Raul Lody. Foto do autor de Alexandre Sant'Anna.




Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 29/11/2005

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 29/11/2005