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Discurso padrão

 

No final dos anos 60, passei uma temporada em Cuba e de lá escrevi, por vias transversas, uma carta ao meu editor Ênio Silveira, da Civilização Brasileira, um dos poucos amigos que sabia onde eu estava. Na carta, deixei escapar um comentário que o próprio Ênio divulgou entre os iniciados que freqüentavam sua editora naquele tempo e circunstância.


"O mal da América Latina não é o subdesenvolvimento, é a retórica". A frase me parece ainda atual, aliás, nunca deixou de sê-lo (o pronome bem colocado é uma homenagem ao Lula, que, na semana passada, soltou um "poder-se-ia").


Lembrei-me dela outro dia, vendo uma das sessões da recente reunião de presidentes latino-americanos, na qual a estrela da festa foi Hugo Chávez, da Venezuela, a quem admiro com reservas embora não goste dele no conjunto. De origem militar, Chávez não chega a ser um orador típico desta banda da América, mas sua força não chega a estar nas armas, mas na oratória populista, rasgada e assumida, naquilo que o termo "populista" tem de bom e de ruim.


Foi em Havana que tomei intimidade não desejada com a retórica dos dirigentes latino-americanos. Darei um exemplo do tipo de discurso que serve de padrão a todos eles. A língua oficial, como não poderia deixar de sê-lo (repito a homenagem), é o espanhol. O tom é alto, exaltado: "El imperialismo de siglos y siglos... (a exaltação faz o orador engolir palavras e frases ditas aos borbotões) ... de la soberania de nuestros hermanos de sangre y voluntad! (Pausa para os aplausos.) La integración de pueblos subdesarrollados, el pérfido capitalismo sin alma y sin límites... (outra enxurrada de palavras incompreensíveis, o orador está sufocado pela infâmia internacional)... ­la hora de nuestra liberación del yugo salvaje que expulsaremos con nuestras manos y corazones!".


A cada final de frase, da qual só se entende o começo e o fim, todos uivam. E todos se consideram salvos.




Folha de São Paulo (São Paulo) 04/10/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 04/10/2005