Um dos salmos mais conhecidos (e bonitos) atribuídos ao rei Davi é o 137, que chegou a ser musicado por alguns compositores profanos. "Junto aos rios de Babilônia nos sentávamos e chorávamos, nos lembrando de ti, oh, Sião! E nos ciprestes pendurávamos as nossas harpas. Os que nos levaram cativos pediam uma canção para que os alegrássemos, dizendo: "Cantai uma canção de Sião". Como cantaremos a canção do Senhor em terras estranhas?".
Nos últimos meses, temos a impressão generalizada de que estamos em terras estranhas, uma espécie de cativeiro moral, no qual ficamos presos e saudosos de uma Sião que julgávamos nossa, constante e eterna.
Nem o futebol escapou da geral avacalhação dos valores que, como povo, cultivávamos sem fanatismo, mas com boas intenções. Felizmente, leio nas folhas que pelo menos o pessoal daqui do Rio começa a apanhar as harpas penduradas nos salgueiros da desolação. As escolas de samba, entre as quais, por coincidência ou propósito, há uma que se chama Salgueiro, já iniciaram os preparativos para o desfile do próximo Carnaval -se é que haverá Carnaval no ano que vem, após o prolongado entrudo que estamos vivendo.
Ainda bem. É sempre com pasmo que tomo conhecimento de que nada afeta a tradição -por sinal, nome de outra escola, com direito à maiúscula: Tradição.
Não temos harpas no Carnaval. É um instrumento suave, harmonioso, mas um pouco triste. Temos cuícas, pandeiros, tamborins, frigideiras e surdos que combinam melhor com a nossa cara e gosto. O arsenal começa a descer dos salgueiros e não damos bola para aqueles que nos jogaram no cativeiro de uma Babilônia que parece não acabar.
Folia por folia, vamos em frente. Não temos o Tigre nem o Eufrates, rios em cujas margens possamos chorar, vendo penduradas as nossas harpas inúteis.
Folha de São Paulo (São Paulo) 05/10/2005