Como é, já resolveu seu voto no plebiscito?- Já, já. Demorou, cara, foi uma discussão braba lá em casa. Muita opinião divergente, sobre se o SIM queria dizer que a gente não queria a proibição ou o contrário, você não imagina a discussão. Acabamos chegando à conclusão de que é o NÃO mesmo. Todo mundo lá vai de NÃO.
- Como é que é? Vocês tão achando que o NÃO vai proibir a venda de armas e munição?
- Não, não. Nós achamos que o NÃO quer dizer que a gente é contra a proibição. E é. Pode votar NÃO também tranqüilo, que é o voto certo.
- Qual é essa de voto certo, cara? Eu sou a favor da proibição, precisamos desarmar as pessoas.
- É, precisamos, precisamos. Vamos começar pelos assaltantes e traficantes, OK? Tu telefona pra polícia e diz pra eles “olha aqui, tive uma idéia-mãe, cês sobem lá nos morros e pegam as armas todas, não fica bandido nenhum armado!” Aí eles batem na testa e dizem “por que é que a gente não teve essa idéia antes, mas é claro, é só ir lá e pegar as armas, obrigadíssimo pela sugestão, ninguém aqui tinha pensado nisso!”
- Pode fazer ironia, mas o desarmamento é um grande passo adiante.
- É verdade. Um grande passo para os esquemas que já estão aí montados, para contrabandear e vender armas e daqui a pouco tu vai poder comprar tua Uzi num camelô da Rua Uruguaiana, onde tu já compra CD pirata.
- Não se pode pensar assim, dessa maneira negativa. O desarmamento é a primeira medida importante e, se você disser que a gente tem que dar prosseguimento, exigindo contrapartida das autoridades, aí eu concordo.
- Eu tou ficando surdo. Tu disse o quê? Que nós vamos exigir das autoridades? Tu já viu algum brasileiro exigir nada de autoridade nenhuma? Brasileiro toma é esporro de autoridade, foi criado nisso e é por isso que faz qualquer negócio para ser autoridade também, nem que seja flanelinha.
- Se a sociedade civil se organizar, o desarmamento põe o Brasil muito adiante. Nossa legislação passará a ser...
- Nossa legislação! Nossa legislação! Eu não agüento mais essa conversa de que nossa legislação é a melhor do mundo, não sei o quê. Pra mim é a mesma coisa que o Jô Soares fazendo a foto do “depois” de uma clínica de emagrecimento.
- Discordo frontalmente. Vamos fazer a nossa parte e exigir do governo que faça a dele.
- Que faça qual dele? Faça como nos hospitais? Nas estradas? Nas universidades? Nas instituições para menores?
- É porque ninguém jamais exigiu realmente, hoje o cidadão é mais cioso de seus direitos.
- Eu sei. É esse governo, esse governo é uma beleza. Não pense que eu não noto os importantíssimos alcances sociais dessa proibição. Por exemplo, grande parte dos excluídos será reduzida.
- Isso mesmo, a longo prazo é isso mesmo.
- Não, eu falo a curto prazo, a curtíssimo prazo. Tu já imaginou o alívio que isso vai ser para o pequeno e o microassaltante? Porque eu já senti que a tua é como a do governo ajudando o pequeno empresário, tu quer ajudar o pequeno assaltante, tu realmente é um grande humanista. Eles devem arrumar um nome aí, “Assalto Participativo” ou “Programa Primeira Bolacha na Cara do Otário”, uma coisas dessas. Tu tá certo, vai ajudar a diminuir a exclusão.
- Tu tá ironizando novamente.
- Só posso estar, cara! Assim que tiver certeza de que nenhum cidadão tem arma em casa, o assaltante que não tem condições de investir em sua primeira arma, que vai estar caríssima, só precisa pegar uns dois comparsas fortes, preferivelmente treinados em artes marciais, e entrar na casa de qualquer pessoa. Quem resistir eles cobrem de porrada. Não vou negar que é uma forma de inclusão, não deixa esses assaltantes sem chance de trabalho. O dono da casa, velho ou fraco e sem dispor do Grande Equalizador...
- O Grande Equalizador?
- Eu me esqueço de que tu não tem cultura literária. O Grande Equalizador era o nome que um escritor americano de que eu gosto muito dava ao revólver. E tem coisa mais certa? Você se esqueceu de que a arma também é a defesa do mais fraco? Com ela na mão, fica mais difícil ser assaltado na base do cachação.
- Cara, tô surpreendido com você, surpreendidíssimo mesmo. Até agora não consigo acreditar que você tenha mudado tão radicalmente, você até ontem pensava o oposto.
- É, mas pensei mais um pouco e descobri que o Brasil é um país muito mais original do que a gente pensa. Você veja agora: meus princípios não mudaram, mas eu vou votar contra os meus princípios para preservar meus princípios. Já basta um tráfico mandando no Rio, que é o das drogas. Com o das armas, já fica demais, a gente nem vai saber a quem obedecer. Nem a polícia vai saber mais a quem obedecer, será o caos. Vá por mim, cara, vote certo, vote na realidade. Vou consultar um ex-padre que eu conheço sobre como é que se diz isso em latim, uma coisa mais ou menos assim: “Investigatio, habemus pizzam. Prohibitio, habemus mutretam.” Claro que está errado, mas ele corrige e por enquanto eu te cedo um slogan: “Para votar SIM, vote NÃO.” Ah, Deus meu, ái lóvi Brêizil.
O Globo (Rio de Janeiro) 09/10/2005