Faz quase 120 anos que, no dia 19 de abril de 1886, nasceu Manuel de Souza Carneiro Bandeira Filho, ou simplesmente Manuel Bandeira, aquele ''menino doente'', que se tornaria depois o ''amigo do rei'' ou, como certa vez dele disse Ribeiro Couto, o próprio ''rei de Pasárgada''. Nasceu em Recife, na Rua da Ventura, que hoje se chama Joaquim Nabuco.
Quatro anos depois, a família decidiu transferir-se para o Rio de Janeiro, indo depois residir em Santos e, mais tarde, outra vez no Estado do Rio, mais precisamente em Petrópolis, onde o poeta passou dois verões.
Em 1982, os pais voltaram a Recife, onde começou um período decisivo na vida de Bandeira, o que ele reconhece como a ''fase decisiva de formação de sua mitologia''. Foram esses anos vividos nas ruas da Aurora, da União e da Saudade que iriam plasmar a alma daquele menino que se recusou a envelhecer e que conferem à sua poesia um permanente e desconcertante traço lúdico, um sentimento de travessura que jamais o abandonará e que levou o poeta Dante Milano, um dos seus maiores amigos, a dizer que esse era ''o segredo de Manuel, o menino que supera todas as amarguras do seu espírito e da sua carne, e que dá saltos, cambalhotas, e enche de gritinhos e risinhos a sua poesia''.
De 1896 a 1902, a família voltou a morar no Rio, fixando residência em Laranjeiras. O poeta cursa então o externato do Ginásio Nacional (atual Colégio Pedro II), onde toma gosto pelos clássicos, em particular Camões e Petrarca, sob a influência de mestres como Silva Ramos e de colegas como os futuros filólogos Sousa da Silveira, Antenor Nascentes e Lucilo Bueno. Ali lecionam também José Veríssimo e João Ribeiro, que, como ele próprio recorda, ''abriram-me os olhos para muitas coisas''. É ainda em 1902 que Bandeira publica seu primeiro poema, um soneto em alexandrinos, que sai na primeira página do Correio da Manhã.
No ano seguinte, o poeta parte para São Paulo e matricula-se na Escola Politécnica, a fim de fazer os preparatórios para o curso de arquitetura, profissão que escolhera sob influência do pai. Mas o destino lhe reservara trajetória muitíssimo distinta: no final de 1904, Bandeira adoece gravemente, sendo obrigado a abandonar os estudos. E é aí que se inicia a verdadeira história do poeta. Não há como esquecer os primeiros versos do poema Epígrafe, que abre A cinza das horas (1917), seu primeiro volume de poesia, cinco anos antes, portanto, da eclosão do movimento modernista.
A tuberculose - cuja cura era então extremamente problemática - surpreendeu Bandeira aos 18 anos. Em busca de clima mais propício, inicia uma peregrinação que iria de Teresópolis a Davos Platz, na Suíça, passando antes por Campanha, Friburgo, Petrópolis e Maranguape. Somente após a internação no sanatório de Clavadel, próximo àquela cidade suíça, em junho de 1913, é que a saúde de Bandeira começa a acusar algumas melhoras. Em Clavadel, o poeta conheceria Paul Éluard.
Bandeira foi por diversas vezes desenganado pelos médicos, que o deram, afinal, como ''portador de lesões teoricamente incompatíveis com a vida''. Foi a partir desse diagnóstico que Bandeira começou a fazer versos ''como quem morre''. Nascia assim o ''menino doente'', expressão utilizada pelo próprio Bandeira no poema Cantilena. Mas a doença, se, de um lado, faz dele o homem triste que lhe preside toda a vida, de outro impôs-lhe um confinamento de quase 13 anos, durante o qual formaria a sua técnica: uma técnica e uma cultura talvez somente comparáveis às que possuía Gonçalves Dias, a quem, aliás, Bandeira devotava a mais irrestrita admiração. Na verdade, a vida desse menino doente nada mais era do que uma interminável agonia, um preparatório, não para a Escola Politécnica, mas para a morte, com a qual desde sempre conviveu, mas que também aceitou e admiravelmente superou, a ponto de, com inexcedível humor, recebê-la como a fiel companheira de todas as horas.
Sem Bandeira, a nossa poesia não seria o que é. Todos nós - eu, como poeta, muitíssimo particularmente - lhe devemos um tributo que jamais poderá ser pago. Bandeira nos deu, acima de tudo, a lição da simplicidade e do despojamento, a lição de dizer o máximo com o mínimo de palavras essenciais. E nisso reside não apenas sua eterna modernidade, mas também o sabor clássico que lhe impregnava cada palavra, cada verso, cada imagem. Sua lição é, por isso mesmo, uma lição de linguagem e, mais do que isso, de cultivo a um tempo austero e irreverente da língua, dessa língua portuguesa sem a qual não haveria a linguagem em que, bem ou mal, nos expressamos.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 12/10/2005