Evidente : é quase um plágio de título conhecido. Brás Cubas não morreu assassinado, viveu em outra época, embora no mesmo Rio. Teve delírios, pensou em inventar um emplastro que lhe desse fama e em ser ministro, o que lhe daria honras. Não deixou para ninguém o legado da miséria humana. O carioca que será personagem desta crônica era, em si mesmo, um exemplar da nossa miséria: acreditou nos outros, principalmente no governo e na opinião pública, que é mais ou menos a mesmíssima coisa.
Deu-se que ele estava dormindo em sua cama de solteiro, no seu apartamento bem mobiliado, bem situado, num condomínio fechado da Barra da Tijuca, lugar de emergentes com vários feitios, com vários passados e diversos futuros, embora, no caso específico, ele não tivesse futuro algum, uma vez que foi assassinado, num dia qualquer de novembro próximo, digamos 2 de novembro, data de finados que, espantosamente, combina com o que lhe sucedeu.
Estava ele dormindo um sono que ele mesmo poderia considerar dos "justos". De fato, o era. Como já foi dito, acreditava nos outros, respeitava a sociedade, procurava votar conscientemente nas eleições, pagava em dia os impostos, só não pagava dívidas porque não as tinha. Vivia bem, ganhava bem e, logicamente, dormia bem. Pensando bem, nem devia ser um carioca autêntico, que geralmente vive mal, ganha mal e, em conseqüência, dorme mal, quando dorme. E, em matéria de dívidas, adota aquele sistema bem carioca de não pagar contas velhas e deixar as contas novas tornarem-se velhas.
Acordou com o cano de um revólver Taurus, calibre 38, encostado na sua testa. Atrás da arma, um cidadão que ele não conhecia, nunca tinha visto nem soubera de sua existência. Ficou indignado e sua reação foi indignadíssima:
- Que é isso? Onde estamos?!
Sentou-se na cama:
- O senhor não pode usar esta arma! Ela é ilegal. Não ouviu falar no plebiscito? Sabe o que é plebiscito? Pois houve um, a fabricação, o comércio e o uso de armas estão proibidos. O senhor está fora da lei, fora da ética, nem deve ser transparente, como se requer de um cidadão!
O desconhecido estava pasmo. Continuou apontando a arma não mais para a testa da sua vítima, mas para qualquer parte de seu corpo, particularmente as que sabia serem definitivas. E pasmado continuou quando o dono da casa pegou o telefone e ligou para a polícia:
- Senhor comissário, vou fazer uma delação desinteressada que não precisa ser premiada. Tem aqui, no meu quarto, ao lado da minha cama, um sujeito politicamente incorreto, que está cometendo uma ação que fere a ética e não tem transparência alguma. Pelo contrário, é sólido e opaco. Tem mais: está portando uma arma ilegal, proibida por lei, já o adverti severamente, lembrando o plebiscito em que a vontade dos brasileiros éticos, transparentes e politicamente corretos se manifestou de forma contundente. Exijo providências. Mais tarde, escreverei uma carta aos jornais denunciando a situação a que chegamos e colocarei na internet um e-mail coletivo contra aqueles que não se submeteram à vontade da nação expressa de forma insofismável no plebiscito de 23 de outubro...
Ia dizer o ano da graça em que ocorrera o plebiscito. Não teve tempo. Nem ficou sabendo se o comissário tomaria ou não qualquer tipo de providência. Levou um tiro na testa. E morreu.
*
Outro episódio com o mesmo personagem, na mesma situação, ou seja, até o momento em que ele acorda com a arma encostada em sua cabeça. As circunstâncias não favorecem uma tomada de consciência. Votara a favor da indagação do governo a respeito das armas. Ele achava que todo cidadão tem o direito de defender a própria vida, comprara um Colt calibre 32 (seis a menos do que o Taurus que o ameaçava), julgava-se protegido não apenas pelo Colt, mas pela decisão soberana do plebiscito que permitia a compra de armas, desde que cumpridas as formalidades legais.
Apesar de ser carioca, ele cumprira as formalidades legais e podia viver e sobretudo dormir em paz, com a consciência duplamente tranqüila por ter uma arma e por estar dentro da lei. O diabo é que o outro também estava dentro da lei na questão da arma. Usava um direito dele e, se cometia um assalto, ação reprovável em todos os sentidos, não podia ser acusado de portar um objeto ilegal, a menos que a arma em questão fosse de uso exclusivo das Forças Armadas
Não havia tempo nem condições para averiguar se a arma era ou não era exclusiva das Forças Armadas. Em princípio, aceitou que o Colt estivesse dentro da lei. O remédio era apelar para o mesmo direito e reagir. Enquanto procurava abrir a gaveta da mesinha de cabeceira, onde repousava a sua arma coberta pelo manto da legalidade, pensou em se congratular pelo fato de ser um bom cidadão, pacífico, cumpridor de suas obrigações, agindo sempre de acordo com as leis de seu país.
Não teve tempo nem para pensar tudo isso nem para apanhar a arma. Levou na testa um único tiro, calibre 38. E morreu.
Folha de São Paulo (São Paulo) 14/10/2005