O país acompanhou, voto a voto, até, praticamente, os últimos segundos, a opção entre Aldo e Nonô para a presidência da Câmara. Viveu-se um miniplebiscito, a conservar ainda o governo Lula a plena iniciativa no tempo minguante, para manter a confiança do outro Brasil, que o elegeu em 2002. Ganhou o Planalto as maiorias possíveis, a custo, sem retoques, nem maquiagens, empalmando a contagem que lhe permitisse vencer a oposição e a onda temporã do velhíssimo mar de lama, reacordado pelo fantasma lacerdista. O governo foi ao rolo compressor, contou com os votos do baixo clero e reafirmou as políticas da coalizão e das reformas - nariz apertado ou não - do primeiro biênio petista.
Continua a aposta - para muitos tão temerária - de que, à estabilidade garantida pelo tandem Palocci-Meirelles, sigam-se o legítimo desenvolvimento social e a passagem de uma mera sobrevivência, na conjuntura internacional, a um projeto de mudança. Por força, o governo só lograria ser pensado em dois mandatos na plena consciência de que, só a prazo médio, poderia despertar a alternativa ao neoliberalismo, herdado em camisa-de-força do governo anterior. É frente a esse objetivo que a realpolitik de agora, reiterada, justifica-se junto a esse Brasil de base, que não se confunde com a clássica opinião pública do “país bem”, do esplêndido berço mediático que o embala e captura.
De toda forma, pela virada de página lograda pela eleição de Aldo Rabelo, passamos a terreno mais sólido de futuro, com o definitivo desaparecimento das hipóteses de impeachment presidencial, do desejo nada obscuro das oposições pefelistas e da jura demolidora da raça do PT. Esmaece o alvo antigoverno, pela demora atarantada das políticas de cassação do pior Congresso do nosso último meio século. A se prosseguir, depara-se um castigo universal e retroativo, no querer-se apurar a teia dos caixas dois, em que se aprofunda, agora, o abuso econômico, da conduta eleitoral às nossas próprias políticas de Estado.
O Ministério Público iniciou formalmente o processo contra Eduardo Azeredo e suas 53 ligações telefônicas para Marcos Valério, no pleno envolvimento, desde 1998, do PSDB inteiro com as políticas ora objeto da férula, afinal, não tão feroz das CPIs, cada vez mais embotadas no seu fio. Mostrou-o a maranha toda do depoimento de Daniel Dantas, que calou quando quis, e não quando pretenderam os inquisidores, e tudo bem. Evidenciou o envolvimento de protagonistas-chave do governo anterior com as privatizações e o horizonte negocial que esses protagonistas abriam à neo e sôfrega economia global das teles e o céu de seus limites. Tal como o controlador-mor repetiu à CPI, tornaram-se sócios do Opportunity presidentes e consultores-chaves da própria política da privatização do governo Fernando Henrique.
E o rechaço agora, de vez, pelos fundos de pensão e pelo Citigroup, do especulador pioneiro, tão chibante na sua distância frente à CPI obsequiosa, demonstra o quanto o novo governo se dissocia do neoliberalismo alegre, na nova política do BNDES e na retomada da ação cívica do Estado no desenvolvimento nacional. Trava-se a via solta e desimpedida dos capitais oportunistas nesse tsunami de vantagens e cornucópias da operação Valério, ainda sem esclarecimento da meta e do portento final de dinheiros. O relator Serraglio já apontou na direção certa. E cassações débeis, no processo de exorcismo da imagem do Congresso, não podem deixar em meio aranzel das verdadeiras suspeitas, levantadas pelo depoimento do banqueiro de todos os espantos e silêncios.
Ao mesmo tempo, a Polícia Federal pede mais tempo para chegar a conclusões sobre as denúncias de corrupção e seu estardalho original. As CPIs querem prazos indeterminados para fechar e repetem que não há, até agora, provas do mensalão. O ex-deputado Jefferson tentou retirar a denúncia contra José Dirceu. Aproximamo-nos, de vez, do “nada-consta”, mirrando a enxúndia das cassações entrevistas há dois meses.
Para além do mensalão o que está em causa é o limite, hoje, de envolvimento do Estado brasileiro com as supervantagens ou os mimos, guloseimas e brindes-viagem que lhe abre a escala dos negócios de que as teles, seus controles e comissões, continuamente mal explicadas, são apenas o prenúncio. Quando volta Daniel Dantas às CPIs, ou quando comprovam, essas, à nação, a resposta a perguntas sufocadas no silêncio profissionalíssimo do depoente?
Diante do Congresso, atarantado num pastelão cívico, o governo vai adiante, desimpedido. Volta, nos percentuais castigados da esperança do Ibope, a subir o apoio nacional ao presidente. Cessou o despenhadeiro do auge da crise e volta, a 44% dos consultados, o Brasil que reitera, sem receio, a confiança no operário no Planalto. E começa, penoso mas determinado, o caminho para o Lula depois do Lula.
O Globo (Rio de Janeiro) 15/10/2005