Talvez não exista critério mais claro da chegada da crise aos seus limites que de uma intervenção inovadora do Supremo no usar, ao lado da guarda da Constituição, o seu poder de normalização do sistema. Nessas interpretações extremas do que seja manter a Carta Magna do País, a Corte se investe da latitude que lhe permita este valor profundo pelo nosso Estado de Direito. Ela não está vinculada ao espartilho das súmulas, nem deixa de levar a interpretação da lei que recomenda o melhor direito romano, no respeito ao bem comum. Há um intrínseco poder moderador da mais alta Corte, que se exerce em favor da estabilidade geral da nação, quer contendo o fio do legalismo extremo, quer não fugindo à norma inovadora, rebelde ao precedente.
No uso destes freios da prática social, interpôs-se, por exemplo, ao poder jovem do Ministério Público ao se extremar, com as atribuições que lhe emprestou, de fresco, a Carta Magna, na vigilância sobre os excessos do poder público e de defesa emergente da cidadania. Corta sempre o último discernimento do Supremo este balanço sensibilíssimo entre o "faça-se a justiça, mesmo pereça o mundo" e a lógica final de que, num Estado democrático, afinal, e sublinhou-o Ibsen Pinheiro quanto ao Congresso, os poderes "fazem o que o povo quer".
Mais, até, ao possível arrepio do próprio regime político do País. No desejo de desimpedir a eventual cassação de José Dirceu o voto majoritário comprometeu a própria essência da autonomia e equilíbrio de poderes definido pela Carta Magna. Doutra parte, a liberação de Maluf e seu filho marcaria contra o rigorismo extremado da justiça de primeira instância, a contenção dos gatilhos publicitários, no determinar-se privação de liberdade claramente abusiva nesta abertura de inquérito criminal. Até onde estas prisões mostraram a óbvia demasia, pelo pretendido receio da manipulação de testemunhas, cedendo a juíza à vindicação simbólica, há tanto hibernada, do trazer-se o político de todas as suspeitas à grade da cadeia, antes da barra do tribunal?
A decisão do Supremo corrigiu o clássico excesso dentro da lei, em que cabe à mais alta Corte mensurar o bom senso e a justiça frente à decisão detergentemente legal.
O pôr-se o ex-governador em liberdade em nada inquina o due process da lei, nem o desdobrar da previsível massa do acusatório que se adensa sobre a sua cabeça.
Mas salva o Judiciário do opróbrio da prisão contundentemente abusiva quando desaparece, objetivamente, a razão que a motiva, e o enlanguescimento na cadeia fica ao alvedrio das datas de julgamento intermédio, das pautas bizantinas e das férias dos tribunais. Sobretudo, a decisão do ministro Velloso tornou clara a força do discernimento da Corte contra o reclamo que, em nome da ordem menor, a OAB invoque o sustento do cantochão do precedente e sua burocracia, contra a plena capacidade de julgar da cúpula da República. Paradoxalmente, também, o Supremo que no caso Maluf corrigiu o legalismo extremo e a ditadura do precedente não o repetiu, por maioria de votos, no debate do recurso de José Dirceu contra o processo cassatório da CPI.
Terminou por aceitar este mesmo formalismo limite, em nome de uma expectativa popular, contra um imperativo mais fundo da própria estabilidade do sistema. Mais grave, atentou à norma deste equilíbrio de poderes do País.
Não há como subordinar à sanção, pelo Legislativo, de conduta de deputado no exercício de funções executivas, como ministro de Estado. É ínsito à independência de cada poder, o subordinar quem o exerce e o desempenho em função do qual possa ser cobrado. De contrário, depara-se uma "longa manu" intolerável do Legislativo sobre quem exerce função de governo e só, nessa qualidade, dá conta de sua ação.
O se processar Dirceu na CPI, por conduta inteiramente alheia a condição de deputado, não aberra, apenas, de preceito básico da Carta Magna. Estabelece, na prática, uma mudança do sistema político, e implanta, por sentença, o Parlamentarismo no País. Com efeito, desaparece toda liberdade de ação de membro do Executivo, se se a dobra, por inteiro, às sanções que lhe possam cominar Comissões de Inquérito como a presente, até a cassação do mandato. Pode fazê-lo um Parlamento cujos membros exerçam como seus delegados, o Executivo. É todo o contrário a mecânica de poderes que nos governa. Fomos, inclusive, a plebiscito para assegurar o presidencialismo.
Eis-nos diante de golpe, sem querer, silencioso senão imperceptível, instituindo, por sentença, a responsabilidade de ministros por atentados à dita ética senão decoro diante do Congresso de que se encontravam conspicuamente apartados. De repente, não mais que de repente, o Supremo entra na crise, para constituir o Parlamentarismo à brasileira.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 28/10/2005