Se é verdade que a democracia, como observara atiladamente o senador Milton Campos, "começa no reino da consciência", seu fortalecimento, contudo, pressupõe uma conduta cotidiana da qual deve brotar a seiva que a robustece e propicia o seu ininterrupto aperfeiçoamento. Isso exige, pois, tanto do conjunto dos cidadãos quanto e sobretudo dos que transitoriamente estão investidos da titularidade do poder, o imprescindível concurso para que o nosso país venha a consolidar a República, enquanto "res publica", convertendo-a em sinônima da cidadania.
Infelizmente, contata-se aqui e alhures, mormente em nosso entorno sul-americano, quer nas pesquisas de opinião quer nas manifestações dos veículos de comunicação, o desconforto com o desempenho individual e coletivo dos atores públicos reclamando a refundação de nossas instituições, seus métodos e processos, bem como celeridade nas decisões, vez que essas são mais eficazes se tempestivamente tomadas.
Esse sentimento, misto de atonia e indignação da sociedade, corolário de acentuado déficit de governabilidade, em grande parte se deve atribuir à falta das denominadas reformas políticas. Sem elas, o nosso sistema eleitoral, o estabelecimento partidário, o regime político, o Estado federal e a própria República podem ser aqui incluídos entre as "promessas não cumpridas pela democracia", para usar a expressão de Norberto Bobbio, e das quais fazem parte a persistência das oligarquias, a supremacia dos interesses sobre a representação política, a presença de poderes invisíveis e uma ainda insuficiente formação política dos cidadãos.
A tudo isso se enlaçam as candentes questões de legalidade e de legitimidade democrática, que hoje oferecem completeza à definição das modernas democracias. A legalidade, como se sabe, se funda a partir da investidura formal dos seus titulares, observados os procedimentos para aceder ao poder, sob forma de consentimento geralmente derivada da universalidade do voto popular estatuído no pacto constitucional. Conquanto se admita legítimo o poder legalmente empossado, agora emerge de boa doutrina a compreensão de tal critério ser insuficiente como base ética para seu desempenho, ainda que isso não signifique contestação às formas democráticas de sua investidura.
Anote-se que, embora os dois vocábulos provenham de raiz etimológica comum da expressão latina "lex, legis": a lei , a legitimidade "distingue-se da legalidade por referir-se a uma instância que transcende o legal e permite atingi-lo em sua significação mais profunda", como dilucida o "Dicionário de Política", de José Pedro Galvão de Souza e outros. A legitimidade do poder contemporâneo, portanto, não se esgota na sua investidura, mas decorre também, e sobretudo, de seu exercício.
Diferentemente do que ocorre com a legalidade, cuja situação se positiva com a posse e, conseqüentemente não se altera, a legitimidade pode se modificar no curso do mandato. A legalidade da origem de todo o poder político é apenas o lado formal de sua juridicidade. O aspecto funcional de seu desempenho está, cada vez mais, condicionado por seu exercício. Nessas condições, já não será legítimo o poder apenas revestido dos critérios da legalidade, mas aquele em que haja coincidência com o atributo de sua aceitação pela maioria. Ou seja: o poder será tão mais legítimo quanto mais o seu exercício corresponder ao que os teóricos denominam de "imagem social do poder", vale dizer, à expectativa que dele tenha a sociedade como seu todo.
Convém considerar igualmente que a estrutura e o funcionamento dos mecanismos de coesão e solidariedade social já não se assentam apenas na capacidade da sociedade de organizar, gerir e administrar os seus conflitos, segundo padrões próprios de cada país. Questões como a proteção das minorias, a garantia da diversidade étnica, cultural e religiosa, a efetiva tutela dos direitos humanos fundamentais, assim como a liberdade, a igualdade de oportunidades e a educação já não são mais padrões nacionais diferenciados; ao contrário, em nossos dias, constituem-se a partir de um conjunto de compromissos jurídicos internacionais cada vez mais amplos e universalizados.
Fundamental, destarte, que a sociedade brasileira, nesse transe que perpassa todo o país, possa refletir conjuntamente sobre mecanismos que melhorem nossas condutas democráticas e renovem as nossas instituições.
Enfim, não se deve ver a crise como sinal de retrocesso ou decadência. A história das nações, disse Tancredo Neves na campanha presidencial é "a história das suas crises". É oportuno, assim, retirar lições que conduzam a repostas aos desafios políticos e institucionais de consolidar a racionalidade econômica e de ampliar nossa coesão e solidariedade sociais.
A adversidade não deve inibir, portanto, nossa capacidade de aprofundar as reformas do Estado brasileiro sem pressa, mas sem pausa na desafiadora tarefa de melhorar o que Bobbio denominou "la bruta politica".
Folha de São Paulo (São Paulo) 09/09/2005