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O admirável mundo pior

 

Muito me comovo quando ouço augustos personagens de nossa vida pública, políticos, empresários, intelectuais, líderes disso e daquilo, afirmando que tudo estão fazendo para deixar um mundo e um Brasil melhores para seus netos.


O desfile é interminável. Senhoras e senhores da mais alta responsabilidade, após arrolarem as desgraças e misérias de nosso tempo, garantem que não "pouparão esforços" para que seus netos vivam num mundo e num país mais justo, mais decente, mais solidário.


Sinto o fígado doer quando ouço prognósticos tão edificantes. Falo no fígado porque a tradição localiza a inveja nesta víscera e nem tenho certeza se fígado é mesmo víscera, talvez não seja, deixo pra lá. Mas a inveja é real. Embora tenha duas netas, nada faço nem pretendo fazer para que elas vivam num mundo e num Brasil que, sinceramente, não acredito que será melhor do que o de hoje.


Antes que me acusem de desnaturado, insisto em afirmar que justamente neste departamento sou "naturado", fiel à natureza do avô, que, por acaso, era augusto mesmo, porque se chamava Augusto. Para falar a verdade, era um tio-avô que fazia as funções dos avós que não conheci.


Ele lamentava o nosso futuro, garantindo que viveríamos num mundo e num Brasil piores do que aquele em que ele vivera. E não era um saudosista, mas um realista, tão realista que na única vez em que foi a um teatro, a convite de um ator seu vizinho, saiu no meio da peça porque o amigo fazia o papel de filho de um senador e meu tio-avô ficou indignado: o pai do vizinho era um amanuense do Departamento de Águas.


Esse tio-avô nos olhava com pena, suspirava, garantia que tudo ficaria cada vez pior, considerava-se um sobrevivente da Era de Ouro. Dizia sempre: "Não queria viver no mundo em que vocês vão viver". Se é verdade que quem sai aos seus não degenera, acredito que, ao menos nesse departamento, não sou um degenerado.




Folha de São Paulo (São Paulo) 17/09/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 17/09/2005