A prudência, sucessivamente identificada com a sapiência e a sabedoria, veio aos poucos se enriquecendo de novos valores, até se tornar a mais importante das virtudes que compõem a ética, condição primordial que é de uma solução justa para solução dos conflitos humanos.
Na antiguidade greco-romana foi ela vista, primeiro, como sapiência ou ciência para, depois, ser equiparada à sabedoria, conforme ocorreu na ética de Aristóteles e dos estóicos, sendo esse o entendimento predominante para a maioria dos pensadores medievais. Mesmo na Idade Moderna prevaleceu a compreensão da prudência como sabedoria, ou seja, como virtude que rege a vida prática.
Durante longo tempo sapiência e sabedoria foram empregadas para indicar a própria filosofia. Como ensina Nicola Abbagnano, o primado atribuído à primeira é própria do conceito de filosofia como contemplação pura; o primado atribuído à segunda exprime o conceito da filosofia como guia do homem no mundo.
Pode-se dizer que, à medida que a vida individual e coletiva veio sendo cada vez mais determinada pelo jogo ou disputa de interesses, cresceu também a invocação da prudência como um dos requisitos essenciais da sabedoria. Para alguns pensadores, ela teria adquirido sentido autônomo, até o ponto de emancipar-se da sabedoria, mas isso não me parece razoável, pois a prudência, em última análise, é a sábia arte de encontrar, com justa proporção e cautela, a solução mais adequada à compreensão e ao julgamento dos atos humanos.
O que a caracteriza é o cuidadoso e aturado balanceamento de dados e valores tendo em vista uma decisão acertada, quer para praticar um ato, quer para proferir um julgamento. É neste caso que ela torna mediadora da justiça. É, em suma, uma expressão de racionalidade, preferindo medidas preventivas para evitar conflitos, mais do que o uso da coação para reprimi-los.
Compreende-se, assim, que os jurisconsultos romanos, fundadores da Ciência do Direito, tenham dado a esta o nome de Jurisprudentia, denominação que prevaleceu por vários séculos até se converter na acepção usual da palavra "jurisprudência", correspondente à doutrina jurídica resultante dos julgamentos dos tribunais. Em um e no outro caso, o que se leva em conta é a desejada sabedoria na formulação da teoria e em sua aplicação prática.
Assente o sentido essencial do termo prudência, há muito que esclarecer a seu respeito, a começar pela falsa noção de que o homem prudente seria uma pessoa hesitante. É claro que uma deliberação prudente pressupõe, como já disse, demorado estudo das questões em apreço, porém não se trata de hesitação, mas de cuidadosa análise dos fatos e das circunstâncias antes de se formar um juízo final.
Igualmente improcedente é explicar a decisão prudente graças a um processo de temor ou receio de errar, porque o fator determinante da possível vacilação e suspensão do juízo é, a bem ver, o senso de responsabilidade, por se desejar uma solução baseada, o mais possível, em fatos objetivos e comprovados, ou, sendo estes impossíveis, em razões plausíveis. É, desse modo, uma das qualidades que exornam as personalidades fortes, quer na execução de atos pessoais, quer no exercício de funções públicas. No primeiro caso, ela resulta do senso de responsabilidade subjetiva; no segundo, do senso de responsabilidade objetiva, na acepção dada por Max Weber a este termo.
Do exposto já resulta o que representa a prudência na vida profissional, e como ela pode ser penosa. Imagine-se o estado de espírito de um médico no instante em que deve tomar uma decisão inadiável, ante o estado crítico terminal do paciente. É em momentos como esses que o ato prudente se converte em ato de coragem, e a responsabilidade ético-científica brilha com um esplendor insólito.
A mesma coisa se dirá de quem se acha no comando de uma operação militar, e se veja na alternativa intransferível de atacar ou de ordenar a retirada da tropa.
O que distingue a prudência é que, às vezes, ela se confunde com a audácia, com a assunção consciente dos riscos de uma empresa, vistos por alguns como ato criticável de imprudência. É, no entanto, a decisão nas ações de dupla valência que distingue os líderes verdadeiros.
Na vida política há ocasiões em que o chefe de governo se vê na contingência de optar entre duas soluções, uma de omissão, outra de arriscada tomada de posição ditada por motivos de salvação pública. Não se diga que, nesse instante, ele "põe a prudência de lado", mas sim que a converte em razão de agir.
Não há, todavia, necessidade desses casos extremos para que uma pessoa prudente se sinta na obrigação de "parecer imprudente". Até mesmo na vida de um operador do Direito, em princípio normalmente tranqüila, podem surgir oportunidades em que ele se sinta no dever, por exemplo, de dizer não a um seu cliente, ou de divergir de uma tese jurídica firmemente estabelecida, até mesmo consagrada por súmula de tribunais superiores, apresentando argumentos novos, a seu ver decisivos e até então não aduzidos, e que julgue necessário debater em virtude de alterações supervenientes no plano dos fatos ou da ciência. É óbvio que não me refiro a nenhuma aventura, mas a decisão tomada após o mais prudente exame das circunstâncias e conjunturas.
Seja-me permitido terminar o presente artigo com breve referência ao novo Código Civil, que, com a corajosa opção por cláusulas ou normas abertas, aumentou a responsabilidade dos advogados e dos juízes, notadamente destes, várias vezes chamados a preencher lacunas ou a proferir sentenças de revisão de contratos, e até mesmo para determinar desapropriação de imóveis no caso de ação reivindicatória relativa a áreas na posse de muitos interessados.
Como supervisor da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil, não vacilei em elaborar ou em concordar com proposições que importam na exigência de maior prudência por parte dos que atuam no mundo jurídico.
O Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em 19/07/2003