Ninguém está satisfeito com o que tem. Acho que faz parte da natureza humana, daí a sabedoria popular concluir que a galinha mais gorda é a do vizinho ou, entre os povos de língua inglesa, que a grama sempre cresce mais verde do outro lado da cerca. Todo ano nos acostumamos a ver compatriotas sulistas, no dia em que neva um tiquinho numa montanha de Santa Catarina, pular naquelas pedras embranquecidas, fazendo tudo o que já viram no cinema ou mesmo nas histórias em quadrinhos. Tem gente que até larga o trabalho em outras regiões e tira uns diazinhos de férias só para ver a neve lá do Sul. E, suspeito eu, temos uma espécie de inveja coletiva dos climas onde borrascas de neve soterram carros e lagos congelam para se patinar alegremente.
Tudo bem. Uma vezinha ou outra, tudo bem. Mas vão viver num clima desses, para saber o que é bom. Eu já vivi diversas vezes e, em verdade lhes digo, aqui é muito melhor, razão por que a gringalhada nórdica enlouquece quando vem a estas terras solares, às vezes definitivamente e não quer mais sair.
Em Berlim, por exemplo, como já tive oportunidade de dizer, o verão cai num domingo. Está bem, dois domingos, mas é só. E vocês precisam ver como o pessoal fica completamente alucinado, a começar por senhoras e moças respeitáveis arreganharem os vestidos e botarem as pernas em cima das mesas dos cafés de calçada, deixando que se vejam (ninguém olha, só quem olha é a gente), digamos, as amígdalas, por uma via pouco convencional.
À beira dos inúmeros lagos de que Berlim é cheia, além de praças e gramados, o espetáculo é também digno de excursões turísticas. Os berlinenses tiram a roupa e assistimos a um show de cuecas e calcinhas nem sempre edificante, mas inegavelmente pitoresco. Nós mesmos morávamos perto de um laguinho chamado Halensee e íamos lá, assistir à movimentação. Não se sai, receio eu, com a melhor impressão do trato que os nativos dão a suas calcinhas e principalmente cuecas (é isso que vocês estão pensando mesmo), mas se compreende o valor do sol, numa terra em que quase metade do ano é passada embaixo de uma montanha de roupas, o dia começa quase às 10 horas da manhã e a noite cai por volta das 3 ou 4 da tarde. E se desfrutam experiências decididamente memoráveis, tais como assistir a uma partida de vôlei jogada por tedescos nus. É inesquecível, cada pulo é uma gozação da lei da gravidade para com o ser humano - do sexo feminino na parte superior, do sexo masculino na parte inferior.
Equipamento absolutamente básico em qualquer casa nórdica é uma floresta de cabides, em paredes ou de pé, pois sair requer de fato aparelhamento polar.
Essa deve ser, embora eu não tenha consultado nenhum demógrafo, uma das principais razões para o declínio das taxas de crescimento da população. Eu mesmo tinha um amigo, brasileiro e solteiro, que morava em Berlim e desistiu várias vezes de moças dadivosas, quando pensava na mão-de-obra envolvida para a chamada conjunção carnal. Sem contar as roupas dele, a começar pelas ceroulas que lhe encobriam apertadamente a cueca, havia as roupas dela. A moça chega, tira o sobretudo, o cachecol e talvez um chapeuzinho. Pendura tudo. Aí é a vez de um casaquinho que às vezes o sobretudo cobre e do suéter. Penduram-se os dois. Vamos então à camiseta e ao sutiã. A esta altura, dirão vocês, pode-se jogar tudo para os lados e partir para os finalmentes. Engano ledo. Há que ajudar a moça a tirar as botas, o que pode demandar esforço físico além das forças de um pobre subnutrido tropical.
Mas, depois de grunhidos e exortações ferventes, consegue-se tirar as botas.
Finalmentes? Não, senhor, agora vem a meia-calça, que nem sempre é tão simples quanto parece. E talvez ainda outras providências relacionadas ao vestuário, não sei bem, não tenho experiência no assunto, casado e comportado sendo. Esse meu amigo pensava nisso tudo e às vezes desistia antes de ligar para a moça - deixaria para outro dia, quando se sentisse mais descansado.
Com o aquecimento moderadamente ligado (para quem pode, porque, a gás ou a óleo, ou, principalmente, a eletricidade, sai caríssimo, tanto assim que muita gente boa, classe média bem arrumada, sobe todos os dias, sem elevador, seis andares, para levar o carvão do aquecimento e desce os mesmos seis para levar as cinzas), ainda se pode ficar com roupas leves - um casaquinho de lã ou um paletó, calças de veludo, cachecol, essas coisas bobas -, dentro de casa, mas, para sair e ir ao supermercado no quarteirão vizinho, a produção é intensíssima, a ponto de eu ter certeza de que muita gente deixa de fumar só para não ter que vestir a roupa toda e ir à esquina comprar o cigarrinho.
E a neve, a neve não é um barato? É, sim; no cinema. Na prática é um troço que, quando cobre os campos de longe é bonito, mas, nas calçadas, vira um inferno, às vezes transformado numa espécie de gelo perverso, no qual se tem que andar com extremoso cuidado, para não escorregar e quebrar o quengo, acidente comuníssimo em regiões onde o inverno é forte. Depois esquenta um bocadinho e tudo de transforma numa lama gelatinosa, insuportável de pisar e capaz de penetrar em tudo, menos em sapato de esquimó, imagino eu. Em outra cidade fria em que morei, nos Estados Unidos, havia ainda que prestar atenção às estalactites de gelo que se formavam nas marquises, as quais, apesar de derrubadas pelos donos delas, com medo de processos, às vezes passavam despercebidas e podiam cair na cabeça do transeunte, com resultados geralmente considerados desagradáveis.
E por aí vai, eu podia escrever horas sobre o assunto, mas, felizmente para vocês, o espaço não dá. E eu somente, como bom simpatizante de teorias conspirativas, queria mostrar como: a) o mundo vai acabar, com esse calor todo no Hemisfério Norte e aqui esta friagem cada vez mais enregelante; b) eles vão trocar de tempo conosco, nós vamos ficar com a neve e eles com o sol. Escrevam o que vou dizer, e ainda vamos ter que pagar pela neve. Os japoneses não patentearam o cupuaçu?
O Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em 17/08/2003