Ai, Deus meu, estive na Bahia, minha terra, para participar da Bienal do Livro de Salvador e fiquei sem ler jornal nenhum, nem os de fora nem os locais, durante dois dias. Várias vezes, correndo o risco de ser acusado de cuspir no prato e torcer pela extinção de meu próprio ganha-pão, comuniquei aos pacientes fregueses desta coluna que ficava tão nervoso e angustiado, ao ler jornais, que abandonaria a prática na semana seguinte e aconselhava o mesmo a todos os que quisessem preservar o que ainda lhes restava de sanidade mental e emocional. Mas, claro, não posso deixar de ler jornais, não só por vício como por necessidade, assim como não pode a maioria dos outros leitores.
Por conseguinte, renunciei mais uma vez a minhas intenções e li os jornais, ao chegar. Impressionante, não calculava como tinha relaxado sem a companhia deles, nem imaginava com que gana brutal a chamada realidade me transformaria novamente num trêmulo feixe de nervos esmolambados, ao me ser descrita no papel impresso. O mundo continua cada vez mais absurdo e louco sob o reinado de Bush II, a vida em nossas cidades cada vez mais difícil e perigosa, o futuro cheio de iminências alarmantes. A única notícia menos horrífica, pelo menos para quem não presenciou o fato, foi a de que o encenador (não sei se este é o termo adequado, no caso; se não for, desculpem a ignorância e, por favor, substituam-no pela palavra adequada) Gerald Thomas mostrou o traseiro à platéia de Tristão e Isolda, no Municipal. Fato cultural singular e, de certa forma, divertido, que serviu para distrair a mente.
Mas não muito, porque logo voltaram as assombrações. Claro, confirma-se o que diversos outros e eu suspeitávamos desde o início. A famosa CPMF não só não será destinada à saúde, como ingenuamente pensou seu idealizador, como o P da sigla se confirma como de “permanente” e não “provisória”, é claro. E, no táxi do aeroporto, jornais abertos, meu companheiro de viagem e eu quase demos as mãos quando pegamos um engarrafamento e lembramos que agora as firmas estrangeiras recomendam a seus executivos que, chegando à noite ao Rio de Janeiro, façam pernoite no hotel do aeroporto mesmo, a fim de evitarem o risco de virar presuntos no trajeto para o centro da cidade. Seria isso o que estava acontecendo à nossa frente, no momento?
Não era, mas por pura sorte, porque bem que podia ser. Voltamos aos jornais. Que diziam mais? Diziam que novamente policiais militares foram alvejados e o governo não fornecia nem coletes à prova de balas para que eles trabalhassem com um pouquinho menos medo de morrer fuzilados. Isso para os que trabalham, porque, contavam também os jornais, diversos foram flagrados, por superiores seus, flanando na hora do serviço. Que mais? Tudo. Em São Paulo, por exemplo, parece que também está pegando a moda de o tráfico de drogas decretar feriados e fechar o comércio em suas áreas de ação, ou seja, qualquer lugar que lhes dê na veneta. Hospitais públicos se declaram incapazes de continuar funcionando, por falta de tudo. Estudantes até hoje não tiveram aulas de muitas matérias, por falta de professores. Corrupção, assassinatos, crises políticas, fantasmas econômico-financeiros, o diabo a quatro.
Concentramo-nos na análise dos fundilhos expostos no Municipal como única notícia capaz de ser lida sem grande temor e até comentamos que o responsável deveria receber um prêmio da cidade, por pelo menos fornecer uma novidade relativamente divertida, em panorama tão avassaladoramente assustador.
Em casa, com um suspiro de alívio e rezando automaticamente para agradecer por mais um dia sem ter nosso prédio invadido, resolvi que não continuaria a ler os jornais. Devia haver boas novas, acumuladas em e-mails dos amigos, nos dias de ausência. Claro, vários teriam mandado as piadas e abobrinhas costumeiras, que me entreteriam um bocadinho, antes de eu ter que pegar no batente. Abro os e-mails e que vejo? As poucas cartas de amigos não eram lá muito animadoras. Uma, competente e qualificada, está desempregada e não sabe mais a quem recorrer, notadamente porque já passou dos 40 e ninguém quer saber de contratar anciões. Outro pede pelo amor de Deus que procurem uma menininha roubada dos pais, com garantia da veracidade do apelo e foto da menininha. Outro descreve a sorte que ainda temos, de não enfrentarmos uma situação de proporções cataclísmicas no campo, tamanhos os focos de tensão existentes. E tudo mais no mesmo diapasão desalentador.
Mas - e nunca imaginei que iria dizer isso - restavam o spams, que, para quem não sabe, são mensagens de propaganda que se intrometem em volumes cada vez mais portentosos, nas caixas de correio dos computadores ligados à internet. É, até que, em comparação com o resto, divertem, pensando bem. Aqui está uma oferta para me transformar num tremendo conquistador de mulheres de qualquer categoria. Outro me promete milhares de dólares, com um investimento inicial equivalente a pouco mais de cem reais. E, entre mais de uma dúzia, um me garante que eu poderei aprender a hipnotizar qualquer pessoa numa questão de horas de estudo e treinamento simples.
Taí, achei a idéia excelente. Creio que, no Brasil, há muito mais futuro no hipnotismo do que em todas as outras atividades, notadamente a de escritor e cronista de jornal. Como é impossível ter tranqüilidade em nosso dia-a-dia, talvez a via hipnótica forneça a uma certamente numerosa clientela um bem-estar de outra forma inatingível e uma confiança no futuro de outra forma impensável. Vou largar isto aqui, comprar um turbante e abrir a Tenda Hipnótica do Professor Ubaldonsky. Conto com sua preferência, até porque devo estar sendo o primeiro a pedi-la e meu curso será americano. E a tenda vai ser na Barra da Tijuca, naturalmente, sob o nome de fantasia de Hypno Heaven. Aguardo sua visita e, enquanto isso, não se esqueça de baixar a cabeça ao passar pela janela, porque nunca se sabe quando a bala perdida pode chegar.
O Globo (Rio de Janeiro - RJ) em 24/08/2003