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O mistério dos nomes

 

O mistério da heteronímia pode ter raízes mais profundas e dispersas de que o pensaria um analista de superfície. Heterônimos teríamos todos, com certeza heterônimos cercariam a pessoa/persona de muitos poetas. Poderíamos, por exemplo, como o faço agora, imaginar/inventar nomes para a multiplicidade espantosa de pessoas contidas em Jorge de Lima.


No caso do verdadeiro Pessoa, que Eduardo Lourenço estuda, no título de seu instigante livro "Pessoa rei da nossa Baviera", há sugestões sobre novas e múltiplas interpretações da poesia em Fernando Pessoa. Nele, deparo com uma série de aproximações da figura de Pessoa com o filósofo-teólogo Kierkegaard. Nele, as poesias de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, cada um no seu enfoque pessoal, juntam-se numa leitura nova e renovadora.


Ao longo desse livro de Eduardo Lourenço, ocorreu-me que muito bom poeta foi heterônimo de si mesmo, por muito de pleonástico exista na expressão, mesmo sem haver escolhido nomes para designar todas as faces de seu posicionamento diante do mundo.


Escritor que, na realidade, conteve em si muitas pessoas - e poetas e prosadores diversos - teria sido entre nós Jorge de Lima, cujo cinqüentenário de morte estamos comemorando este ano. Sua obra poderia ser estudada como tendo sido feita por quatro ou cinco poetas e prosadores distintos. Há o Jorge de Lima parnasiano, mas talvez se hesite em incluí-lo nesse chão, tão rápida foi sua passagem por ele.


Há o Jorge de Lima da poesia negro-brasileira, o de Nêga-Fulô, o do Nordeste eminentemente africano. O Jorge de Lima católico, o de "Tempo e eternidade", o da parceria com Murilo Mendes e dos poemas de instigação ao "Senhor Deus do Nordeste", dos "Desertos" e dos "Deserdados". Houve o Jorge de Lima romancista, o de "Calunga", fixado em sua terra nordestina, mas também o romancista de "Guerra dentro do beco", o irmão de Bernanos, Mauriac, Octávio de Faria e Lúcio Cardoso.


O Jorge de Lima dos sonetos e da reconquista de uma linhagem portuguesa nos versos brasileiros provocou mudanças de perspectiva no fazer poesia no Brasil. O Jorge de Lima de "Mira Coeli" poderia situá-lo na linha dos poetas místicos da Espanha. O autor de "Vidinha de Castro Alves" tornou-se companheiro dos poetas de cordel do Nordeste, com toda a firme simpleza de seu entendimento poético. Pouco antes de sua morte, sem que o Brasil estivesse para tanto preparado, surge "Invenção de Orfeu", um ápice ainda não contemplado em toda a sua inteireza, ainda não amplamente discutido e estudado, apesar do exaustivo pré-estudo que a ele dedicou João Gaspar Simões.


Mas é um Jorge de Lima de meados de sua produção, de 1934, que desejo realçar aqui. É o Jorge de Lima surrealista. O de "O anjo". O uso, no caso, da palavra "surrealista", embora adequado, pode parecer que o não seja. Se pensamos no inventor do Dadaísmo, Tristan Tzara, de onde os franceses extraíram o surrealismo, ou em Breton e Eluard como donos de um novo território literário, ou nas pessoas de Pessoa, "O anjo", de Jorge de Lima, poderia ser tido como super-realista, expressionista ou mesmo surrealista, mas seria simplesmente uma nova busca do poeta, não só da Bem-Amada, mas da Palavra, da melodia, uma busca intensa e imensa, em que Anjo e Herói são uma só pessoa, mas se distinguem um do outro em tudo o que não é busca, procura, movimento. Ao mesmo tempo, o Herói explica o Anjo, explica-o para os desconhecidos, mas também para a família, para a mãe que recebe o Anjo com se louco fora e, no meio de tudo, o padre-mestre diz a frase que é a chave da história: "... nada é mais veloz que a Graça do Senhor".


Em seguida, lê o padre o trecho da conversão de Saulo no caminho de Damasco ("Saulo, Saulo por que me persegues?") que há dois mil anos vem sendo acontecimento marcante na história religiosa do mundo. O surrealismo de Jorge de Lima pega trechos do Brasil, da Cinelândia carioca ao Nordeste, fala em "Lonjão. Lonjão. Fazenda da Ilha Grande". Tudo se juntava no cheiro das coisas em geral que, misturadas com a busca da Bem-Amada, se tornavam inesquecíveis: "Às primeiras bátegas de chuva" o personagem se concentrava todo no gozo do cheiro da água batendo na terra, "cheiro de terra molhada, gorda, farta, terrinha socada e firme".


O Jorge de Lima surrealista é um acréscimo aos muitos heterônimos que nele podemos distinguir e enumerar. De vez em quando, um heterônimo antigo penetra em outro, bem mais recente, e se chamo a atenção para o heterônimo que deveria ter assinado "O anjo" é porque nele está uma das chaves da busca de Jorge de Lima. Como se o caminho de Damasco tivesse marcado de tal maneira sua obra que ele teve de apelar para uma realidade além da realidade a fim de romper o mistério de si mesmo.


Num estudo comparativo, por exemplo, entre "Calunga" e "O anjo", quase que o pesquisador é levado a abandonar qualquer comparação, porque o mundo de cada livro é tão diferente do outro que, com toda a certeza, o autor de um não pode ser o autor do outro. Em "O anjo" é como se deparássemos com um Kafka diferente, para o qual era preciso que o personagem ficasse inteiramente cego e sem mãos a fim de que a Bem-Amada pudesse existir.


Existiram então nove ou dez Jorge de Lima? Poderia ele ter escolhido heterônimos que assumissem cada uma das pessoas contidas em sua obra? O assunto pode levar a especulações muitas. E díspares. Teria Jorge de Lima o tipo de abordagem poética, dilacerantemente consciente, de Fernando Pessoa? Ou seria, no brasileiro, mais forte o impulso de se colocar em vários ângulos a fim de extrair, da realidade, a maior soma possível não só de emoção mas também de encantamento?


Sua busca poderia também ter-se fixado no viver experiências capazes de erguer a tampa do mistério das coisas que só uma visão surrealista dessas mesmas coisas pudesse proporcionar.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 02/09/2003

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em, 02/09/2003