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Nada como um dia depois do outro

 

Acho que, por certas coisas, a gente paga a vida toda. O pugilo de bravos que lê esta coluna há algum tempo deve lembrar que já mencionei aqui o fato de que, durante uma fase mais ou menos breve de minha juventude, fiz grande força para ser comunista. Incluo-me até mesmo entre os raríssimos heróis que já encararam O Capital e tentaram lê-lo até o fim. Achei, em emocionante caça clandestina, um exemplar em espanhol que até hoje está comigo, em algum lugar do pandemônio de livros do meu gabinete e fingi não haver sido intimidado por suas mais de 1.600 páginas. Não cheguei ao fim, confesso. Mas fui mais longe do que a maioria dos que tentaram a temerária empreitada, embora, verdade seja dita, não me recorde de nada, ou quase nada.


Sempre que eu tentava entrar para o célebre partidão, acontecia alguma coisa que não me deixava, inclusive, em episódio longo demais para contar aqui, uma deplorável crise de riso que sofri, numa reunião em que meu ingresso nas hostes bolcheviques já era dado como certo. Essa crise, que até hoje me embaraça um pouco, deve ter mudado a trajetória de minha vida, porque, desconfio eu, ainda há camaradas dos velhos tempos (nas reuniões, pelo menos na a que compareci, a gente tratava os amigos como "camaradas", o que, aliás, deflagrou o início da crise de riso) que ainda não me perdoam e, se ela não me houvesse acometido, não sei qual teria sido o meu destino.


Realmente, aquilo não se faz, embora todo mundo conheça esse fenômeno das crises de riso, pois há algumas que a gente não consegue evitar e, quanto mais tenta contê-las, mais elas pioram. Enfim, trata-se de um incidente, na minha não tão brilhante vida política, que gostaria de esquecer.


Mas não esqueço e, por alguma razão, mesmo os que, antes de me lerem aqui, nunca ouviram falar em mim, de vez em quando me acusam de ser um comunista rábido e ao mesmo tempo insidioso, infiltrado na imprensa democrática. Não adianta, deve ser alguma coisa em minha aparência, devo ter cara de comuna, só pode ser. Volta e meia recebo uma carta indignada, me lembrando o tempo em que os comunistas recebiam o ouro de Moscou e devoravam criancinhas e ressaltando que perceberam, nas entrelinhas, minhas posições no mínimo stalinistas.


Para esses, não há negativa aceitável e acredito que vá morrer com essa fama e, por conseguinte, antiamericano até a medula. Nada mais infundado.


Brinquei com meninos americanos em criança (meus vizinhos, filhos de funcionários de empresas americanas que a Petrobrás contratava na Bahia), estudei e morei lá, conheço bastante bem a cultura, tenho vários grandes amigos americanos, já tive mania de jazz e até poderia viver nos Estados Unidos, contanto que numa situação econômica que me permitisse evitar a desconfortável situação de cucaracha. Não abrigo - e até considero tacanho esse tipo de pensamento contra qualquer povo - raiva nenhuma do povo americano.


Feitas estas já demasiadamente longas ressalvas com que tento mostrar minha insuspeição, sinto-me à vontade para curtir com a cara de quem foi na conversa de Bush II, inclusive ele mesmo. A gente esquece, mas não devia esquecer, que essa guerra do Iraque era para ser ganha em questão de dois ou três dias, que tudo seria cirúrgico e preciso, sem a necessidade de participação de ninguém mais. Bush II disse, várias vezes e de diversas formas, que dispensava o apoio de outros países, pois os Estados Unidos podiam resolver tudo sozinhos. Já que a ONU, por exemplo, não queria apoiar a guerra, que se danasse a ONU, que até se desmoralizasse, como merecia.


Nada seria parecido, por exemplo, com o que houve no Vietnã, mesmo porque o Iraque sequer conta com as florestas que tanto ajudaram os vietcongues.


Filme já visto, disse eu na ocasião, mas imagino que a reputação de comunista contribuiu para que alguns sentissem, na minha posição, uma evidente má vontade para com os Estados Unidos. Afinal de contas, a nação mais poderosa da Terra, com Forças Armadas dispondo de tecnologias mal sonhadas pelas outras, não iria entrar numa esparrela. Estava não só apoiada em sua potência bélica como em informações de alto nível, através de serviços de inteligência sem rival.


Agora vemos o que está acontecendo. A batalha, digamos, convencional de Bagdá foi vencida. Mas as seguintes, como qualquer pessoa de juízo preveria, estão longe, muito longe, de ser ganhas. Pelo contrário, a situação naquela área do mundo se torna cada vez mais complicada e, nos próprios dizeres do político americano Howard Dean, que está se ensaiando para uma candidatura à presidência dos Estados Unidos, eles agora estão precisando, e não pouco, da ajuda dos países que antes desprezaram e mesmo insultaram. A ONU hoje é convocada a interferir e tratada em termos bem diversos dos que, faz bem pouco tempo, eram empregados.


Ninguém achou as famigeradas armas de destruição em massa. Os grandes achados eram, de modo geral, ferro-velho, indícios patéticos e pouco convincentes. Ninguém encontrou Saddam Hussein e, apesar de alguns dizerem que ele está morto, faltam provas. Ninguém botou as mãos em Bin Laden, ninguém conseguiu paz nenhuma, os atentados se sucedem, a era do terror, em lugar de esvair-se, parece uma ameaça cada vez mais concreta. Bush II pede ao Congresso mais dinheiro e se prepara para jogar os Estados Unidos, ano que vem, num assombroso déficit de cerca de 600 bilhões de dólares. Os americanos às vezes parecem que acreditam nos próprios filmes deles, em que são mocinhos triunfantes e seus inimigos seres em todos os sentidos inferiores. Estão vendo, mais uma vez, que não é bem assim, o que não constitui necessariamente uma boa notícia. Deus nos ajude, nesse futuro que eles continuam construindo. E Deus os ajude também, porque eles podem vir a precisar mais do que nós.


 


O Globo (Rio de Janeiro - RJ) em 14/09/2003

O Globo (Rio de Janeiro - RJ) em, 14/09/2003