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Da corrupção ao caos sistêmicos

 

O que começou com as acusações do "mensalão", de réplica em réplica transformou-se no processo sem volta do Brasil de sempre e sua injustiça estrutural, acelerado pelo advento do partido diferente e pelas contradições que são ainda a sua paga, no processo de tomada de consciência nacional. Demo-nos conta, em rapidez sem paralelo, dos impasses profundos que acometeriam qualquer chegada ao Planalto de uma proposta de mudança em que fale o "outro país" chegado ao poder. Atingiu-o pelo arranco de um verdadeiro inconsciente coletivo, quando a Nação da marginalidade foi à fundo, como marca única de nossa cultura política, no exercício do voto para a quebra de inércia do sistema e rasgo de outro futuro possível. Poderá o PT soçobrar neste quadro, ou se exasperarem os confrontos entre a esperança em Lula e o que seja, fiel à originalidade matriz. à legenda da disciplina e da caminhada decisiva desta última trintena.


O castigo da corrupção, sempre refletindo a estrutura do velho regime, contaminaria o PT no poder. Pagaria, por aí, o castigo mais fundo, de que não é pelo estrito voluntarismo social que se vira a página de um status quo. O velho resiste, pertinaz, e envolve os lances do novo a ponto de atingi-lo no âmago: o ideal da ação política seduz-se ao deslumbramento neófito da eficácia, senão ao controlismo político na leitura tentadora - e para ficar - do aluvial de votos, nascidos de uma expectativa nova e visceral do que fazer, e de vez, por um outro País.


Qualquer que seja o desfecho do desmonte quase sacrifical do PT que chegou ao Planalto, o País ganha, para além da crise, o sentimento da impossibilidade de voltar-se ao dantes da vitória de Lula. O desmantelo destes meses mostram claro aberto por este avanço da consciência política, mesmo travada no seu impulso, ou esmaecida no seu projeto. O que começou com as denúncias como facécias de Roberto Jefferson desenha hoje o quadro da enorme dependência da nossa vida política, frente às condições econômicas do mundo globalizado, e às vinculações entre o aparelho público, crescido sobre as velhas clientelas e o negócio privado, vindo a perspectivas impensáveis de articulação de interesses e benefícios. O PT não se mostrou imune ao abuso, tanto quanto a corrupção se modernizou na eficiência e na amplitude do esquema Marcos Valério, passado dos "caixas 2" à sistemática das votações, para o ganho das maiorias e do novo governo - cheque sacado contra voto aceso no placar do Congresso.


De meada em meada, entretanto, o que se descerra é todo o porte do financiamento da operação que, por sua vez, no típico dos momentos de mudança de escala de uma estrutura econômica passa vertiginosamente por diversos enlaces para encontrar os mesmos atores e seus prepostos. De que não se pode suspeitar Daniel Dantas e o Banco Opportunity? - repetiu a senadora Ideli na argüição domagnata. Por que tramas não passa a fabulosíssima articulação desta teia de vantagens e benesses como manifestaram tantos os inquisidores da CPI, quanto os processos em curso na Polícia Federal.


É esse o verdadeiro núcleo duro de tudo que explode hoje na CPI, no aluir da corrupção tradicional. O controle político do Legislativo é degrau sôfrego, de uma constelação mais ampla em que nosso subdesenvolvimento político, é presa neófita do dinamismo da conjuntura internacional, numa envergadura que ainda deixa aberto o seu script. O que diga Daniel Dantas às CPIs supõe urdidura mais vasta, que não se decantou ainda na sua nebulosa de interesses, vantagens, comissões, mercado futuro e suas reservas, contratos de oportunidade, negociações sobre o virtual da imagem e da informação.


Roberto Jefferson acordou os manes do lacerdismo; da força da impostação da voz, do brilho da frase, da percussão do látego, levantando o denuncismo e o discurso da suspeita e da vindicação abstrata, sem retorno. Combinou a eloqüência e audácia do criminalista, como permite a primeira retórica amadurecida da cultura brasileira. A retórica velhíssima do "mar de lama" foi a de 54, transposta a 2005 com o mais gasto de seus ápodos e o arrepio mais contaminável ao Brasil das classes médias, o que paga impostos, o que tem noção do erário, e do desmando dos cofres do poder.


Ao ouvir-se Daniel Dantas o que se desenha para o infinito roteiro, agora, inacreditável da abominação é o liame do aparelho público com a tratativa internacional, passado pelos seus prêmios, seus lobbies, suas máquinas, suas redes de negociação e definitivo anonimato. Daniel, na ponte dos suspiros ou do cosmo, sabe com que bancos negocia, mas sem nenhuma noção do corte de interesses, o do portento das condicionantes a que enlaça a dita dinâmica desta nova prosperidade emergente do País.


As CPIs já mudaram por inteiro a esta altura o propósito e o âmbito do que a que vieram. Não podem mais se demitir, entretanto, do desmonte dos primeiros cenários que de busca de responsabilidade que vão muito para além da corrupção dos legisladores no "mensalão" - ou da dependência do político brasileiro pelo aparelho econômico que o circunda.


Lula tem todas as condições de, no chão que é só seu da primeira identidade popular, não transigir sobre a dureza dos cenários e do corte real das opções por sobre o "corte o que cortar", na carne dos corruptos petistas. As comissões de inquérito não têm mais a saída dos exorcismos de praxe. Nem diante dos depoimentos de Daniel Dantas, o velho status quo consegue ir à frente como um ator legítimo, inclusive para reorganizar temporariamente a estabilidade nacional.


Um partido, que nunca se viu como salvacionista nem carismático, enfrenta as seduções do situacionismo para voltar, num esforço dificílimo, a manter a diferença de futuro. Mas conserva a sua chance. O povo que sofre espera mais que o Brasil "bem", que logo se enoja e se indigna.




Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 30/09/2005

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 30/09/2005