Há 100 anos, em São José do Rio Pardo, Estado de São Paulo, punha Euclides da Cunha o ponto inicial em seu livro “Os Sertões”. Estava, como engenheiro, reconstruindo a ponte daquela cidade, havendo composto o livro num barracão em que funcionava seu escritório. O texto inicial do trabalho já fizera parte de sua colaboração no jornal “O Estado de São Paulo”.
Escrevera-o como jornalista, tendo elaborado suas informações e análises no contato direto com a luta que se saberia ter sido a revolta do Brasil interior contra o litoral europeizado. Por muito primária fosse tal conclusão, seria admissível aceitar-se que os homens de Antonio Conselheiro lutavam contra a República e a favor da Monarquia? Também primária poderia ser essa interpretação.
Combate da virtude contra os costumes livres da costa? Prova de que a religião é, como julgam muitos, o aspecto mais importante da vida do homem na terra? Mais do que o sexo e a reprodução da raça humana? A verdade é que aquele brasileiro um tanto enfezado, áspero, dotado de extraordinária visão de seu país, fora colher na Bahia uma nova interpretação do Brasil.
A República, sim, era o seu lema. Nela via o ideal da vida em comunidade, e por ela daria sua vida. No começo de sua missão, ao mandar despachos jornalísticos para o jornal, entoava hinos de louvor à República, mas logo uma visão nova de Canudos se implantou no escritor, e ele passou a ver e compreender com mais capilaridade o seu país.
Naquele mesmo ano de 1901, Garcia Redondo leu os originais do livro e, entusiasmado, recomendou-o a Lúcio de Mendonça, prestigioso membro da Academia Brasileira de Letras. Apesar do patrocínio de Lúcio, não conseguiu Euclides publicar seu livro nas oficinas do próprio “O Estado de São Paulo” nem nas do “Jornal do Comércio” do rio de Janeiro. Aceitou-o a Livraria Laemmert, que o editou no ano seguinte.
A partir de então tornou-se o nome de Euclides da cunha o símbolo de um Brasil novo e de uma literatura plantada na terra. Sua eleição para a Academia Brasileira de Letras, em 1903, foi uma conseqüência natural do livro que então começava a se tornar uma bíblia de brasilidade. Ligou-se, na Academia, a Lúcio de Mendonça, Machado de Assis, Sílvio Romero (que o recebeu na Academia), Garcia Redondo, Coelho Neto, Oliveira Lima e Vicente de Carvalho. Seu discurso de posse foi de alto nível literário e seu estudo sobre Castro Alves (“Castro Alves e seu tempo”) colocou-lhe o nome entre os bons analistas de poesia do Brasil.
Alceu de Amoroso Lima, em seu livro de 1941, sobre Machado de Assis, traça um paralelo, entre Machado e Euclides, como representantes de aspectos decisivos da inteligência brasileira e da literatura do país. Para Alceu, a luta de Canudos teve em Euclides a “compreensão profunda de seu significado”, que ele condensou no terrível epílogo de “Os Sertões”, ao falar nos crimes da nacionalidade”, - foi daí que nos veio o verdadeiro Euclides da Cunha.
Sentindo a divergência trágica que iam tomando as diretrizes da ação social brasileira, Euclides da Cunha entrou deliberadamente na luta, inconsciente mesmo do papel que iria representar. Sua obra teve uma repercussão que o tempo só tem feito crescer.
Na dicotomia entre o litoral e o interior, acrescentou Alceu: “Euclides vinha mostrar, eloqüentemente, e com fatos, o erro do litoralismo político, que fora na monarquia o parlamentarismo, importando fórmulas e confundindo ficções com soluções - embora tendo conseguido organizar a estrutura social da nacionalidade e fixar a face mais original de sua literatura até então - e agora na República o caudilhismo militarista, corrompendo as forças armadas pelo veneno politicamente. Literariamente, vinha revelar o erro do esquecimento em que jazia a massa dos homens brasileiros e dar aos vindouros um exemplo incomparável de originalidade, ao tomar em suas mãos a matéria bárbara americana, e procurar a obra suprema de um artista.”
Há cem anos, Euclides relia seu manuscrito, esperava que um editor se dispusesse a lançá-lo. Publicado o livro, ingressaria também no Instituto Histórico e, apresentado por Oliveira Lima ao Barão do Rio Branco, passaria a trabalhar sob a égide o Ministério das Relações Exteriores, que lhe deu a incumbência e, na qualidade de membro da Comissão Mista Brasileiro-peruana, fazer um reconhecimento do Alto-Purus. Elaborou e retificou inúmeras obras de cartografia, num trabalho paciente de investigador incansável.
As comemorações dos Cem anos de “Os Sertões” começarão neste 2001, já que o escritor terminou o livro em 1901, e terminarão em 2002, lembrando o lançamento de sua grande análise do Brasil em 1902. A Biblioteca popular da Ilha do Governador, que se chama Biblioteca Euclides da Cunha e é subordinada à prefeitura do Rio de Janeiro, promoverá, de agora até o ano que vem, um ciclo de conferências em homenagem a seu patrono.
Tribuna da Imprensa - Rio de Janeiro - RJ, 11/04/2001