Nestes dias em que a esperança escurece, dias de perplexidade e decepção, releio um ensaio daquele denso e avisado pensador Alberto de Seixas Martins Torres, que presidiu a sua província fluminense e honrou o Supremo Tribunal. Não me volto agora para os seus livros capitais, "A organização nacional" e "O problema nacional brasileiro", que por certo inspiraram, em 1930 ou 31, a fundação, no Rio, da Sociedade dos Amigos de Alberto Torres (surgiu após a Sociedade dos Amigos de Marcel Proust, e desejo crer que não se tratasse de uma réplica retardatária do nosso grand monde carioca...).
Mas hoje, como já antecipei, meu assunto é um pequeno volume de Torres com título de sabor poético: "As fontes da vida no Brasil". Prezo-me de ter prefaciado, em 1990, a segunda edição da obra, a convite da editora da Fundação Getúlio Vargas.
Queira o leitor registrar: foi em 1915 que Alberto Torres escreveu sobre as nossas fontes vitais, para alertar as elites dirigentes do país e conclamá-las a uma política séria de aproveitamento e, em certos casos, de defesa do nosso duplo e imenso patrimônio natural: o hidrográfico e o florestal.
Medite-se nestas advertências, escritas há oitenta e seis anos, sem a verbiagem de certos pragmáticos de hoje, toldados por um falso conceito de objetividade e modernidade; são advertências de uma atualidade instigante.
Uma delas: "O problema do reflorestamento, o da restauração das fontes naturais e o da conservação e distribuição das águas são, em nosso país, problemas fundamentais."
Torres teve a coragem de ser simples e fácil ante as elites difíceis. Veja-se a claridade destas outras palavras, de 1915: "Na Europa, a experiência estabeleceu, há longo tempo, os costumes do reflorestamento e da conservação das matas, severamente policiados, e regulou-se o corte das madeiras e da lenha. Entre nós, onde as matas exercem vital função, não só nenhum esforço se faz por conservá-las, mas propagam, ao contrário, os governos a necessidade de incrementar a expansão econômica do país, para realizar a obra, tão vaidosa quanto ilusória, de engrandecimento e de emulsão econômica."
Prossegue Alberto Torres: "Hoje, as crises da natureza confundem-se com as da dissolução social e econômica e com as da anarquia política." E lembrava, como se nos falasse hoje, num recado severo: "O Brasil é um país cuja existência material está gravemente ameaçada por falta de águas. Negá-lo seria coisa que excederia de todas as raias do senso da probidade."
Aí está. Seria preciso que não vivêssemos no Brasil para impugnarmos a judiciosa simplicidade do grande Alberto - sua palavra reta e direta.
Em decorrência, acentuava ele que temos "em primeiro lugar um problema higronômico, que precede todos os nossos problemas agronômicos e econômicos".
Noutro lance, parece que o velho realista aponta, não sumariamente para os economistas, mas para os ortodoxos do economismo ou do financismo puro e simples, movidos, um e outro por umas tantas peripécias ou cabriolas mentais, à margem de tudo o que possa significar o interesse real do Brasil-nação e ainda mesmo do Brasil-Estado.
Seria injusto dizer que não se trabalha; trabalha-se, mas com absoluta precisão no erro, de costas para a própria experiência e quase nunca por uma gestão racional das nossas "fontes de vida", em termos positivos, objetivos, sem a burocracia estorvante ou o bizantinismo das fórmulas dos fazedores de ilusões...
Eis então o nosso Torres no auge da verdade, a alertar: "Teremos de prevenir a tendência para isolar em abstrações e conceber em formas geométricas as questões práticas da realidade."
Não será tudo isso um começo de explicação para as incomodidades e privações que nos trazem o apagão ou os apagões?...
Alberto Torres estava entre os videntes de realidades que marcam o nosso meio físico, nosso meio social, nosso meio político.
Entrego à sensibilidade do leitor seu brado de alerta de 1915. Não há rugas no seu pensamento; suas idéias não envelheceram.
Estão tinindo de veracidade. E de oportunidade.
O GLOBO, 13/07/2001