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Medo de voar

 

Admito que se pode rir de quase tudo, a depender da perspectiva que se tome, mas não tenho achado graça nenhuma nas piadas que, para citar somente um veículo, circulam na internet, com montagens, cartuns e frases espertinhas sobre as tragédias que vêm acontecendo nos Estados Unidos. E também tem gente me escrevendo com reprovação porque não fico dizendo “bem feito”, em relação aos americanos. Assumir uma postura crítica quanto, por exemplo, à política externa americana é uma coisa; aprovar a morte indiscriminada de inocentes, americanos ou não (ou até achar que não existem inocentes entre os americanos), é absolutamente outra coisa.


Tenho bons amigos nos Estados Unidos e a verdade é que não só desaprovo os atos terroristas, como me preocupo por esses amigos e pela população em geral. Mesmo quando eu era metido a comunista e me achavam subversivo, nunca consegui engolir o terrorismo como arma política. Admito que há, infelizmente, motivos para o surgimento do terrorismo, mas não aceito justificativas para ele. E a assustadora verdade, apavorante mesmo, é que ele parece ter vindo para ficar, trazendo conseqüências igualmente alarmantes, a primeira das quais é com certeza o fato de que a segurança vai terminar por sacrificar a liberdade e a privacidade, vai gestar injustiças e ainda mais ódio, num mundo que gostaríamos de ver em paz.


O conceito de soberania nacional já começava a perder seus fundamentos, com a crescente interdependência dos Estados. Talvez ainda se pudesse falar em soberania em relação às chamadas grandes potências. Os Estados Unidos mesmos - ou a França, a Inglaterra e o Japão - podiam acreditar que detinham soberania. Hoje as instituições estão ameaçadas pela desordem e pelo medo, e o Estado, claramente, já não detém o monopólio da violência, elemento básico inclusive nas democracias mais evoluídas. Somente o Estado podia prender, multar, confiscar, expropriar ou mesmo chibatear, mutilar ou matar. Agora mais não. Agora muitos grupos e até indivíduos quebram rotineiramente esse monopólio e não parece haver caminho de volta.


A tendência à desordem, tão visível hoje, vai acabar gerando a ordem excessiva. As liberdades individuais já estão sendo limitadas em diversos países que se orgulhavam delas. A privacidade, já ameaçada pela tecnologia informática, vai esvair-se. Quem trabalha, por exemplo, nos edifícios teoricamente mais visados pelo terrorismo, nos Estados Unidos, certamente não fará objeções a medidas de segurança extremadas e à vigilância em toda parte. Não acho improvável que até os banheiros sejam monitorados e que todos os que entrarem em qualquer recinto sejam submetidos a detectores de material suspeito e a revistas rigorosas. E, claro, toda informação obtida, mesmo que não seja do interesse da segurança - como, por exemplo, o comportamento ou preferência sexual dos cidadãos - acabará por ser usada. Viveremos num mundo orwelliano, cujos contornos básicos já se podem discernir.


Penso em aviões, meio de transporte que aproxima as nações e torna viável a manutenção de diversas conquistas da vida contemporânea. O medo de voar já não é mais um sentimento que acomete exclusivamente certo tipo de pessoa ou temperamento. Agora é uma realidade objetiva: voar dá mesmo medo, porque ninguém mais pode estar inteiramente seguro de que uma viagem de avião não terá um desfecho trágico. Claro, sempre houve acidentes de aviação, mas o meio de transporte era considerado dos mais seguros do mundo, perdendo apenas, estatisticamente, para os elevadores. A indústria aeronáutica, antes poderosa, dá sinais de enfraquecimento, as companhias de transporte enfrentam dificuldades sem precedentes e algumas das mais tradicionais já se encontram em condição pré-falimentar. Até o faturamento obtido com o transporte de carga em aviões de passageiros vai sumir, porque doravante só se transportará carga em aviões dedicados exclusivamente a isso. O que esta situação vai gerar nas economias afetadas talvez seja impossível de prever, mas o número de pessoas que, direta ou indiretamente, depende dessas atividades, como na hotelaria e nas agências de turismo, já permite entrever o baque que todos sofrerão.


Sim, as medidas de segurança nos aeroportos estão ficando cada vez mais rigorosas, mas não são suficientes. Se é possível - mesmo que cometendo injustiças, como já foram cometidas, com a negativa de acesso a vôos a certos passageiros cuja aparência pareceu suspeita aos outros (basta ter cara de árabe, o que lá seja isso, para despertar essas suspeitas) - fazer uma triagem dos passageiros, não é possível controlar todos os elos da complexa cadeia que compõe o transporte aéreo. Qual será, por exemplo, a possibilidade de sabotagem durante a manutenção dos aviões? Não sei, mas impossibilidade não há, assim como, segundo andei lendo, já existem armas de plástico de última geração, imperceptíveis aos detectores de metal. Fazer uma viagem aérea pode vir a tornar-se quase tão trabalhoso quanto fazer uma viagem espacial, para exagerar apenas um pouco.


E para não falar, ai de nós, que, no Brasil, essas medidas podem até estar sendo tomadas com maior rigor do que pensamos, na nossa eterna descrença quanto à nossa própria seriedade. Mas as razões para a descrença permanecem. Eu mesmo, voltando de Porto Alegre num vôo iniciado em Montevidéu, desci na área internacional do Galeão. “Quem veio de Montevidéu passe por aqui, quem veio de Porto Alegre pode ir seguindo”, dizia amavelmente uma moça. Ou seja, se um terrorista fanático tivesse embarcado em Montevidéu, podia, sem precisar provar nada, agir como se tivesse vindo de Porto Alegre e não enfrentar nenhum controle, nem mesmo de passaporte. Sim, eu não tinha, como muita gente, medo de voar. Agora tenho, e muito mais gente também. Aliás, a verdade é que, do jeito que o mundo vai, não é descabido imaginar que, mais cedo ou mais tarde, tenhamos não só medo de voar, mas medo de tudo.


 


O GLOBO em 18/11/2001

O GLOBO em, 18/11/2001