A crise comandada pelo "mensalão" apossou-se das manchetes oficiais, em nome de um discurso antigo, a passar o seu veredicto, não obstante a enormidade dos novos cenários de dependência econômica e política das nossas instituições. O novelo de Roberto Jefferson desenrolou o portento do abuso modernizado, ao padrão da complexidade dos interesses e dos aparelhos em que se entrelaçam verbas orçamentárias, fundos de pensão, contas de propaganda, contratos de venda fatura de votos no Legislativo. A atingir o situacionismo da hora, veio ao patíbulo da opinião pública todo o estigma da corrupção inseparável, como sua segunda natureza, do subdesenvolvimento político de um País, ainda preso à privatização da coisa pública, própria à dominação típica da nossa estrutura semicolonial.
Não há esfera de poder, dentro das órbitas da Federação em que o contratualismo da força política não se transforme na cobrança de favores pelas famílias da parentela, ou da aliança política, trazidas, como clã, aos gabinetes vencedores do pleito. Ou às suas alternâncias, tanto a vitória e a derrota sempre dentro do mesmo estrato social e político das candidaturas, pauta a oscilação pendular do velho regime: sua consangüinidade era a razão mesma desta, a garantir o eterno resultado circular de seus desfechos.
Não amadurecemos no País, ainda, no contexto em que se marcharia para desprivatização neste elo nuclear entre o poder econômico e o condicionamento político que dele emergisse. Mas surgiriam de logo as operações de risco e os primeiros empresários - de que seriam padrão as siglas das empresas de Marcos Valério, a operar no mercado incipiente - e na sua sistematização criadora - bem antes do advento petista e provendo à saciedade ao sucesso do PSDB, a partir da oferta de serviços, de senadores a deputados estaduais em Minas Gerais. Começava a mudança da prática em que o gasto eleitoral só saía do pecúlio particular do candidato milionário, sem chegar a um regime nítido do financiamento público das campanhas, objeto do novelo sem-fim das reformas eleitorais e seu indigitado saneamento do abuso nas urnas. A operação intermédia se transformaria, por força, na contratualização de tais recursos e no avanço pelo empresário, num pacto também de risco, supondo o ressarcimento por pagas subseqüentes de serviços elencáveis dentro do orçamento, e das verbas alocáveis à área de poder prometida ao eleito.
A fase do exercício de poder federal pelo PSDB mostraria etapas destes requintes operatório, lidos como a "modernização da corrupção". Ela antecede à chegada do PT ao Planalto, mas tentou a legenda a mesma prática, no que a inércia do sistema prevaleceu, senão anestesiou, o capital da diferença com que o partido de Lula ganhou o País em 2002.
Não se precisará de maior recuo histórico para saber-se até onde a decisão final do comando político do Governo inclinou-se pela sedução da conquista das maiorias largas, num impulso de trazê-las ao aprisco, não importasse a paga, na primeira euforia que autorizava o tamanho da vitória. Tratava-se, em última análise, de saber-se até onde iria, por sobre o programa, o imperativo da entrada em ação do Governo diferente. Optou-se pelo impacto a prazo dos resultados, por sobre a mantença do lineamento programático e na fidelidade às origens do Governo.
Na própria dinâmica desta eficácia, o partido confiaria no correntio da sua máquina - em nível dos Delúbios - para além do "vale-tudo" da campanha e seus gastos. Delineava-se, a custo, a linha divisória entre as pagas, de ressarcimento do esforço eleitoral anterior à criação de militâncias controladas pelos recibos mensais, correspondentes às performances esperadas. O sistema se sofisticaria, ainda, na avocação destes contributos, às entidades públicas, de administração central, ou, sobretudo, autônomas, entregues a representantes de partidos políticos coligados, mediante contratos favorecidos aos operadores do superesquema.
A entrada no jogo do partido diferente desbordou do manejo da corrupção sistêmica no Congresso, presumindo-se as regras de jogo de sempre; do apuro "até certo ponto" das Comissões; do exorcismo sempre limitado aos bodes expiatórios, caso fosse necessário o sacrifício, para o recomeço da clientela, e a confiança na desmemoria com os percalços dos choques, também, de rotina. Como resiste um Congresso ao cenário de uma cassação que pode chegar a 20% de seus representantes, e assumirá um cataclisma de faxina, atingindo a imagem atual dos partidos diante das iminentes campanhas eleitorais?
O acordão que ora se delineia, antecipa-se numa auto-eliminação da crise, a partir da iniciativa inédita de todos os partícipes. O que está em causa é o reconhecimento generalizado da pertinácia sistêmica da corrupção. Mas os jogos das suposições patinarão nos labirintos de uma chegada à responsabilidade presidencial. Instintivamente o Congresso afez-se à idéia, e entende que está em causa a própria subsistência dos atuais protagonistas do jogo de poder.
O apoio instintivo do acordo faz-se até mesmo antes de se saber o rol completo do desfile dos acusados de corrupção junto à opinião pública que a exposição mediática tornou irreversível.
O silêncio preventivo dos caciques do PFL ou do PMDB preparou o caminho para que, inclusive, o pacto se defina logo, no melhor balanço possível de qualquer conta de custos e benefícios, sobrevidas imediatas, ou estragos definitivos junto à Nação. Há que se perguntar, por aí mesmo, e exatamente na toada das viradas de página, o quanto uma culpabilidade conjunta diante da corrupção exibe, de vez, ao país a mazela crônica sem hipocrisias moralistas, nem o mergulho em cadeia de denúncias retroativas.
O crime torna-se imprescritível para o que conta, ou seja, a responsabilidade comum do regime. Mas vai confiar no lenitivo de sempre, também comparsa da mesma mazela do subdesenvolvimento. E a tratar a República como cosanostra. Joga-se na desmemoria perseverante da política brasileira apostando no acordo lustral, com um mínimo de baixas. Ou talvez até sem elas.
Folha de São Paulo (São Paulo) 12/08/2005