A crise tem a sua retórica. Normalização, a sua linguagem. Na sucessão de choques e espetáculos cívicos das últimas semanas, a surpresa do pronunciamento do ministro Palocci, em pleno meio-dia de domingo, deu-nos o direito à credibilidade política. Suas frases descansadas contrastam com os excessos do denuncismo ou as manipulações do acordão, no empenho do Congresso de voltar ao controle do script, saído dos trilhos das CPIs, e suas apostas na desmemoria do país.
Segurança se infunde, não se proclama. E é o que já devemos à sensação de desarme do ministro, no estilo aberto às perguntas, mesmo que soassem a provocação, enrustidas na perícia jornalística. De toda forma, o diálogo interagiu com os questionadores, descontaminados ainda do jogo mediático dos parlamentares. Repetia-se indefinidamente a pergunta quanto à estabilidade da pasta, não obstante o Ministro tivesse desde saída dado a resposta perfeita. Não tem porque reassegurar-se no cargo, já que o presidente negou-lhe, inclusive, qualquer saída provisória. E a palavra veio, no mais coloquial dos encontros da cúpula do governo.
Palocci repetiu tudo que sabe, sem deixar qualquer suspeita para a platéia do até onde pode ir. Não se lembrou do telefonema de Buratti às 12:53 da manhã. Mas lembrou que chamadas como essa estavam na rotina dos seus atuais e antigos auxiliares, que podem chamá-lo até à 1h da madrugada. O tom do ministro desarmou de vez a máquina infernal do denuncismo destes dias, fazendo da suspeição convicções, à margem de fatos ou provas, no rondó condenatório do atual espetáculo parlamentar. Deixou clara a manipulação das evidências, que hoje invadem as manchetes da mídia. A conversa de Palocci foi fala cidadã, enquanto garante a volta à presunção normal desses interrogatórios num Estado de Direito. Ou seja, a da presunção de inocência ou da verdade de quem fala, até a prova em contrário, trazida à inquirição. A paz nos mercados voltou segunda-feira, nesse duplo fecho, em que o sismógrafo dos índices financeiros regula, sobretudo, a saúde política e a tranqüilidade cidadã.
O essencial, entretanto, da palavra inovadora foi o protesto contra o abuso das procuradorias, perturbando o prestígio fundamental da instituição, a partir de declarações sôfregas à mídia, em meio ao debate na volta da fita e rompendo o sigilo dessas declarações. Sobretudo, o que ora se evidencia é o deslate da delação premiada como atentatória dos pressupostos mínimos de verdade nas investigações públicas. Esta mecânica violentadora de toda espontaneidade de uma declaração remonta ao mesmo expediente das torturas, e do seu emprego, ainda clandestino por vezes, nos interrogatórios criminais.
Palocci falou da violência imposta a Buratti com a sua prisão, as algemas, o humilhante traje laranja, e a tranca na cela. A situação de dependência física, e sobretudo psicológica, forçava o destempero e a inverdade para o escape da hora, tal como o advogado do ex-assessor foi o primeiro a proclamar. Num país e num governo tocado pela melhoria do Estado de Direito não há como permanecer este expediente de confissão equívoca, forçada pelo alívio de um castigo físico e moral. Que validade objetiva terá esse depoimento, diante de processos que mal começam e onde podem naturalmente se anular?
A vaga moralista já descambou hoje para o denuncismo com todas as galas da inacreditável ''delação premiada''. Sempre fez a cabeça das classes médias de dentro do sistema e por uma vez dispostas a dar uma chance a Lula. Mas a marca do partido diferente responde a outra lógica, tanto quanto a expectativa do ''Lula lá'' traduz um valor político primordial, de identificação e de convivência democrática e pacífica do país de sempre, com o Brasil do outro lado. A verdade de Palocci bloqueou toda tentativa de prosseguirem, agora, as oposições na tentativa do impeachment. Mas persiste a idéia de manterem o engatilhado, tornando o presidente seu refém, com tão-só o direito de terminar o mandato em cova rasa. A transação implícita é a da renúncia já a novo mandato. E o expediente do Congresso é o de manter-se o fantasma das suposições, transformadas em convicção, passada à opinião pública que não chega ao país profundo, mas comanda as manchetes.
Mas como fica a Câmara de Severino, depois da vaia estrondosa em São Paulo, e já antecipatória da assuada federal: varre a quase centena de suspeitos ou corre para o acordão, expondo-se à definitiva perda de imagem? O Brasil que espera a decisão, ao ouvir Palocci já sabe por onde não passa a maquinação nem o destempero sem fim do denuncismo.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 24/08/2005