Ao se retirar da vida pública, deposto em 29 de outubro de 1949, Getúlio Vargas tornou-se um senador relapso, permanentemente licenciado. Usou da tribuna poucas vezes e, a rigor, só gostaria de tê-la usado uma vez: aquela em que prestou contas de seu governo, transcorrido em sua maior parte sob regime ditatorial. Cometeu uma violência contra a história: um ex-ditador que vai ao Congresso, um Congresso eleito democraticamente, e assume perante a história a responsabilidade de todos os seus atos.
Não precisou esperar que o capim lhe nascesse à porta, já havia bastante capim em torno dele, criara-se naquele campo rasteiro e generoso que alimentava o gado e, macio, igual, ondulava nas coxilhas. Satisfazia-se com sua vida frugal, solitária. Aos outros aquele tipo de existência parecia um abandono, uma decadência, até mesmo um castigo. Mas gaúcho vive assim mesmo, na aspereza de seus hábitos, de sua desconfiada rusticidade.
Aquela era a vida de seus antepassados, misto de guerreiros com pastores, submetidos às incertezas de uma terra onde as fronteiras naturais eram desprezadas. No território das Missões Ocidentais, não havia lugar para o conforto, muito menos para o luxo.
A fertilidade dos campos atraiu jesuítas espanhóis que ali pretenderam fundar uma civilização à parte. Os Sete Povos das Missões, dos quais São Borja é o mais antigo, serviram de cobaia a uma experiência social e econômica de que só a audácia do jesuíta seria capaz. Mas os portugueses conseguiram, gradativamente, empurrar o paralelo de Tordesilhas cada vez mais para dentro do continente e, de uma hora para outra, o que era campo de gado virou campo de batalha -ali, a expressão não é uma figura de retórica.
Depois vieram os farrapos, os paraguaios, o cerco de Estigarríbia, a vila saqueada, os campos devastados. E vieram os homens de Gumercindo Saraiva. Enfim, o são-borjense, como os demais povos missioneiros, guerreava e cuidava do gado, sem tempo nem gosto pela comodidade. Um fogo para as noites de frio, um teto, o porongo predileto para o mate amargo, um naco de carne no braseiro. Bastavam.
A fisionomia pastoril e guerreira fora, mais tarde, modificada pela emigração que Portugal destinara ao remoto "continente de São Pedro" - o Rio Grande do Sul não merecia sequer a classificação de província. Vieram os açorianos, trouxeram a agricultura, a língua, a religião e o laço com o restante do Império.
O Império mantinha um ponto avançado às margens do Rio da Prata: a Colônia do Sacramento. Na realidade, era uma posição simbólica, não representava nem uma ocupação nem uma proteção contra a concentração espanhola de Buenos Aires. Entre Sacramento e Laguna (a última ponta do Império), havia a vasta terra de ninguém, ia-se do rio da Prata até Laguna sem que se atravessassem cinco porteiras.
Quando visitou a região, Saint-Hilaire escreveu um hino de louvor que o historiador Carlos Reverbel acusa de responsável pelo narcisismo do gaúcho: "Os homens que vi em São Borja", diz Saint-Hilaire, "são notáveis por sua grande estatura, brancura da pele, tamanho e beleza dos olhos. Há neles um ar audacioso e resoluto. Vestem-se como os habitantes de Montevidéu e têm a aparência dos vilões de melodramas".
O perfil não se ajustava a ele. Mas não há ressentimento no coração do ditador decaído. Ele dissera, certa vez, que "só há uma força capaz de construir para a eternidade - é o amor". Burilada por outros, a frase tinha agora uma forma definitiva: "Só o amor constrói para a eternidade".
Uma lembrança das antigas leituras de Ésquilo: "A violência gera violência". Fora pronunciada na Assembléia gaúcha quando discursava na sessão em que se comemorava o fim da guerra de 1918. Sim, a violência gera a violência, e ele fora obrigado a gerar violências.
Às vésperas de voltar ao poder, ele recebera uma carta de um amigo. Costumava chamar esse amigo de "Daniel", era seu emissário freqüente à cova dos leões famintos que o rodeavam. "Daniel" era contra o regresso à Presidência. Escrevera-lhe uma carta profética: "Os liberticidas são sempre sacrificados. O senhor escapou da primeira, não escapará da segunda".
A carta falava em César, em Brutus, a cena sempre repetida - na vida e no palco -, o sangue dos liberticidas sendo lavado de um chão e fecundando em outro, até novo punhal. E se ele juntasse César e Brutus no mesmo braço?
A carta fizera-o lembrar-se de uma bobagem a que um amigo o obrigara: um astrólogo tomara a data e a hora de seu nascimento, as impressões digitais, a assinatura, e mandara depois o resultado. Apesar de o Dasp não ter criado o cargo de profeta nos quadros da nação, o astrólogo candidatou-se a um. Disse que, em outras gerações, ele havia sido Demóstenes, Henrique 4º, Danton e Lincoln.
Ao receber a carta de "Daniel", lembrara-se daquela sucessão de nomes e de um detalhe que lhe havia escapado: todos eles haviam tido morte violenta.
Folha de São Paulo (São Paulo) 26/08/2005