A morte de Leopold Senghor foi um dos maiores desfalques sofridos pela humanidade em 2001. Perdemos, com seu desaparecimento, o poeta e o estadista, mas também o pensador que lutou para tornar compreendidos os fundamentos ontológicos do pensamento africano.
Professor, parlamentar (representou o Senegal no Congresso francês), criador de um país, intérprete de um povo, defensor de um socialismo africano, isto é, um socialismo que respeitasse a realidade e a "situação da África", na linha do que ele chamou de "humanismo negro-africano", tinha Senghor consciência de que o primeiro desafio, a que os africanos precisavam responder em nosso tempo, era o do idioma.
Para muitos dos escritores da África de hoje, a língua européia em que escrevem é um segundo idioma, um idioma aprendido, uma língua que não foi a da infância. Claro que um segundo instrumento lingüístico não impediu que Joseph Conrad fosse grande escritor de língua inglesa no passado.
A partir dos movimentos de independência de colônias africanas (anos 50 e 60), escritores que haviam começado a falar em woloff (Senghor), iorubá (Wole Soyinka) e Ibô (Chinua Achebe) passaram a escrever poemas, peças de teatro, romances e ensaios no idioma do colonizador: Senghor, em francês; Soyinka e Achebe, em inglês.
Todo o movimento que constituiu a base da negritude e assumiu expressão francesa foi seguido por um surto de literatura de língua inglesa, ainda em plena ascensão. Já escrevi alhures que não vejo possibilidade de, em futuro próximo, tornar-se uma língua africana veículo importante de expressão internacional e literária.
As exceções poderiam ser o swahili e o malgaxe. Em Madagascar, principalmente, tem sido grande, nesse particular, o avanço. Conseguiram os habitantes dessa ilha formar uma língua em que entraram o sânscrito, o português, o francês e idiomas africanos.
Métrica da negritude
Antes mesmo de a poesia de Leopold Senghor haver mostrado ao mundo uma nova face da África, já o poeta malgaxe Jean-Joseph Rabéarivelo, que se suicidou em 1937, revelava sinais da mudança que se processava naquele continente. O rato roendo a lua de um de seus poemas de Traduits de la Nuit representava um tom novo na poética africana, tom de influência européia, mas com uma direiteza de expressão que fazia parte do complexo ontológico da filosofia negra, mais tarde estudada pelo padre Placide Tempels.
Na linha de Blake e Rimbaud, embora sem filiação direta à poesia do inglês ou à do francês, tinha Rabéarivelo o dom da visão poética. Sua presença, em Madagascar, no período de entreguerras, poderia ser tida como profética: nele, um homem da terra atingia, em francês, um poder de expressão que até então parecera reservado à literatura nascida na Europa.
Não havia, em Rabéarivelo, marcas fortemente africanas, que apareciam em Senghor, apesar do, por outro lado, profundo significado europeu da poesia senghortiana. Seu verso largo vem de ritmo africano ao mesmo tempo em que se aproxima da poética de SaintJohn Perse. No caso deste, a poesia, mesmo sendo francesa, buscava inspiração em ventos de fora, nos do desero de Gobi, nos da Patagônia.
Em Senghor, a africanidade de seu pensamento, a negritude de sua métrica - ligada ao tantã do tambor comum do continente - tudo o levava - tudo obrigava aquele dominador do idioma francês e do pensamento cartesiano - a não se soltar das fundas implicações de sua terra.
Visitando o Brasil
Quando visitou o Brasil oficialmente em 1964, na qualidade de presidente da República do Senegal, promovi um encontro em minha casa, a pedido do próprio Senghor, que desejava conhecer pessoalmente poetas brasileiros. Lá estiveram Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Augusto Frederico Schmidt, Homero Homem, Nilo Aparecida Pinto, entre muitos outros.
Cecília Meireles estava internada então no Hospital dos Funcionários Públicos, não pôde comparecer, mas pediu-me que ligasse para ele e colocasse o poeta visitante ao telefone, o que fiz. Conversaram durante 15 minutos. Na mesma época, poemas de Senghor saíram em vários jornais do Rio.
De minha parte, traduzi os versos de "Oração às máscaras" que tem este início: "Máscaras! Ó Máscaras! / Máscaras negras, máscaras vermelhas, e vós máscaras pretas e brancas, / máscaras retangulares onde o espírito respira, / eu vos saúdo em silêncio! Saúda, em seguida, o ancestral, a memória, o ar da eternidade e personaliza o espaço: "aqui onde respiro o vento de meus pais".
Herança do homem de sensações
Na base do pensamento - poético - de Senghor, estava sua filosofia de vida. E sua convicção de que o método de conhecimento africano (sua epistemologia) é tão respeitável como qualquer outro e mesmo bem mais avançado no plano da filosofia de agora do que muitos. Aforma, por exemplo, que o "socialismo científico" foi superado pelos métodos contemporâneos do conhecimento, o fenomenológico e o existencialista, que proclamam a coexistência da razão e da intuição no ato de conhecer.
Ora, diz Senghor, este é e tem sido precisamente o tipo de conhecimento negro-africano. Diante do "objeto" a ser conhecido, diante do "outro" (seja esse "outro" Deus, animal, homem, árvore ou pedra, fato natural ou fato social), não se coloca o africano na atitude clássica do europeu, que é a do alheamento.
Para o negro-africano - um "puro campo de sensações" - o "objeto" não se desgarra de quem o conhece. O sujeito toca o objeto, apalpa-o, sente-o, simpatiza com ele, conhece-o, é ele. Acrescenta Senghor que o negro-africano não usaria o "logo" da filosofia européia (penso; logo existo), mas, homem de sensações (de toques, danças, cantos), poderia dizer: "Eu sinto, eu danço o Outro; eu sou." Como herança aos poetas do século XXI, deixa-nos Senghor o "abandono ao objeto" ao invés do "apego ao sujeito", não a razão-olho da Europa, mas a razão-toque, a razão-amplexo do pensamento africano, que está mais próximo do logos grego do que da ratio latina.
Tribuna da Imprensa em em 02/01/2002