Desde quando se deflagrou a competição entre as ideologias - tomada esta palavra para indicar as teorias que procuram explicar o processo de desenvolvimento das idéias políticas e as atividades econômicas - o que desde logo impressiona é a mutação contínua delas, em contraste manifesta com a continuidade do capitalismo e da chamada ideologia capitalista.
Não creio que o capitalismo tenha sido o mesmo, desde quando surgiu na Época Moderna, não sofrendo alterações através dos séculos, mas o que nele se mantém intocável é a sua estrutura como um fato, ou uma ordenação factual, ou seja, como um polo de referência dos seus demais componentes.
Desde a incipiente vida capitalista de natureza mercantil corporativa, ela se distingue como produto da experiência social, isto é, como uma solução ditada por exigências do mercado, como se deu, por exemplo, quando este se expandiu além das cidades-sede dos estabelecimentos, surgindo as primeiras formas do que viria a constituir a poderosa instituição do crédito bancário.
A linha ou diretriz fundamental do capitalismo é o valor do útil, e, mais propriamente, do útil-vital, para cuja satisfação iam sendo experiencialmente criados os instrumentos geradores da riqueza.
A opção feita pelos agentes do capitalismo foi, desde o início, a opção pela riqueza, como soube bem ver Max Weber, um dos profundos intérpretes do espírito capitalista, ao apontar a diferença entre o mundo católico e o dos protestantes, aquele apegado à idéia da pobreza, como condição de abertura para a sacralidade; e o segundo dominado pelo ideal do enriquecimento e do poder baseado cada vez mais no crescente acervo dos bens materiais.
Outra força decisiva na implantação do capitalismo foi a competição, o amor pela livre iniciativa e a livre concorrência, enquanto que os demais agentes econômicos davam preferência às benesses resultantes do auxílio do Estado. Essa confiança em si mesmos teve um significado poderoso como fator instaurador da empresa, que se tornou o fulcro social por excelência do desenvolvimento e do progresso.
Não foi, pois, sem razão que a primeira idéia de valor - a palavra-chave do mundo da cultura - foi instituída pelos fundadores da Ciência Econômica, Adam Smith e David Ricardo. A Axiologia, ou “Teoria do Valor”, tem suas raízes no solo econômico, e somente a cavaleiro dos séculos XIX e XX é que iria expandir-se como expressão infinita daquilo que “deve ser”, abrangendo todas as criações do espírito.
Nem se deve outrossim, esquecer que, quando surgiu o maior adversário do regime capitalista, Karl Marx, foi na idéia de valor que ele foi buscar a razão de ser da luta a ser travada, mas em sentido negativo, como mais valia, ou seja, como o resultado da alegada exploração capitalista, ao se apossar o dono da empresa do real valor do trabalho, pagando salários miseráveis. Note-se que Marx, exemplo de inteligência positiva, não escreveu um livro sobre O Trabalho, mas sim três volumosos tomos sobre O Capital: os valores do trabalho ficaram por conta de seus discípulos, uma vez destruída que fosse descomunal força capitalista, e, em verdade, nunca chegaram a um fecundo entendimento capaz de ser a base do Estado e do sistema político.
Somente para terminar o quadro da gênese da Axiologia, lembro aqui a figura de Nietszche, que culminou pregando a revolução de todos os valores, como que anunciando uma nova era, a do super-homem.
Mas, voltando ao capitalismo, sua teoria, toda de experiência feita, veio assumindo a estrutura correspondente ao desenvolvimento da ciência e da técnica, com a utilização da energia do vapor e da eletricidade, cedendo a empresa mercantil lugar à empresa industrial, para esta, afinal, ceder passo ao mundo dos serviços, em razão da informática e da robótica. Nem é demais salientar que as exigências das guerras universais aumentaram ainda mais o capital a serviço da técnica.
O certo é que, agora, o capitalismo, por múltiplos motivos, está na sua crise mais aguda, de um lado com o desemprego, fonte de insegurança e de incerteza, e, de outro, com o fenômeno generalizado da exclusão social, com a miséria de bilhões de criaturas.
Os empresários voltam para a ciência e a técnica, e não encontram nela a esperada solução, a não ser segundo o ilusório otimismo do neo-liberalismo, crente apenas nos valores do mercado.
Na realidade, à falta de outra saída, volta-se à idéia do Estado Nacional, apesar da globalização se apresentar para muitos como a via do futuro, mas, na realidade, ela não envolve apenas o mundo econômico, abrangendo também usos e costumes, e até a linguagem, que o Estado tem a obrigação de preservar como valores de cada povo.
Penso eu, todavia, que, na atual conjuntura, é imprescindível cuidar também dos valores éticos, como limites essenciais ao superamento da crise. Estou convencido de que sem finalidades morais a economia contemporânea não readquire seu necessário equilíbrio. Sem uma limitação ética no plano dos lucros desmedidos - que a globalização financeira não reduz entregue a si mesma, à sua ambição infinita - não haverá meio de superar a sempre crescente exclusão social.
Dir-se-á que estou voltando à economia utópica, mas a justiça social, imperativo do mundo global (o globalismo ético não vale menos que o econômico-financeiro!) não pode deixar de ser uma razão de ser e de decidir, sem o que o “mísero planeta”, a que se refere Dante, não deixará de estar dividido entre os cada vez mais ricos e os cada vez mais carentes dos meios elementares à vida.
www.miguelreale.com.br (27/08/2005)