Como já é do conhecimento comum, nas últimas décadas do século passado, sob a pressão das mudanças operadas no plano das idéias e dos processos tecnológicos, deu-se o que se convencionou chamar "revolução da mulher". Esta consistiu não apenas no acesso da mulher a postos de trabalho antes exercidos apenas por homens, como no surgimento de novas entidades familiares, como, por exemplo, a "união estável", criada pela Constituição de 1988.
Ao lado desses fatos, ocorreu também uma queda relevante no plano moral, crecendo o número de pais que não hesitam em abandonar os filhos havidos no matrimônio e outras uniões familiares, quer para constituir outras, quer para fugir às responsabilidades que resultam da paternidade.
Foram todos esses fatores que determinaram uma profunda alteração na estrutura social, a qual deixou de ter como base essencial o casamento concluído segundo os mandamentos legais, considerado fundamentum republicae, ou seja, elemento primordial da sociedade.
O certo é que, com a instituição do divórcio e a mudança radical ocorrida nos costumes, se acentuou desmedidamente a desconstituição das entidades familiares, com a opção dos progenitores por outras atrações da vida social.
Pois bem, no Brasil, conforme o revela o relatório do IBGE, com base em dados do ano 2000, o número de separações e divórcios subiu 32,5%, o que representa uma desconstituição social da maior relevância, cujas condições determinantes são atribuíveis a múltiplas causas, desde a mudança havida na vida conjugal, tornando-se os cônjuges infensos a suportar e superar as pequenas crises naturais no convívio familiar, até as seduções sexuais propiciadas pela civilização contemporânea.
O que, emprimeiro lugar, houve foi uma diminuição na conclusão de casamentos, que de 5,1% passaram a 4,3% ao mesmo tempo em que aumentavam as separações e os divórcios, de tal modo que, em 1998, houve 28,2% de dissoluções para 100 uniões matrimoniais, enquanto que antes essa proporção ainda era de 21,2%.
Acresce que, sobretudo nas camadas inferiores da comunidade, o que acontece, com bem maior freqüência, são uniões formadas à margem da lei, assim como é à margem da lei que elas deixam de existir, haja ou não prole.
O grave é que, quando existem filhos e são eles abandonados, devido à irresponsabilidade paterna, mostra o Censo que ocorre um aumento considerável no número de famílias sustentadas tão-somente por mulheres, as quais correspondiam a 10,5% em 1999 e se elevaram a 14,2% em 2000.
Neste mesma página, em artigo intitulado As heroínas, já tive ocasião de enaltecer o mérito das mulheres que se sacrificam, reunindo, a duras penas, as horas de trabalho às destinadas à educação da prole. Quando não se dá essa assunção de responsabilidade, ou é ela insuficiente, o que temos são os meninos de rua, muitas vezes arrastados para as sendas do crime.
Em editorial recente do Jornal da Tarde, são lembradas as observações feitas a esse respeito por Robert Bly, em seu livro The Sibling Society (A Sociedade dos Meios-Irmãos), mostrando as graves conseqüências de serem os filhos criados tão-somente pela mãe, "com conceitos morais deformados pela ausência da figura paterna", sendo a educação da criança transferida, quando o é, para escolas, passando, não raro, a televisão (e que televisão!) a constituir a única companhia de que ela dispõe em caráter permanente.
Como se vê, o abandono criminoso dos filhos pelo marido ou companheiro é um fato corriqueiro em nossa coletividade, cabendo notar que tal fato ominoso é um desafio ao que dispõe o nosso Código Penal, em seu artigo 244, impondo pena de detenção aos pais que não prestam assistência familiar.
Ora, perante um quadro dessa natureza, é necessário advertir que, no mais das vezes, a mãe abandonada não tem meios para propor ação visando a exigir alimentos do progenitor irresponsável, permanecendo este impune.
É o caso, por conseguinte, de indagar se não há mesmo meio legal para reparar situação tão revoltante, notadamente em virtude do papel que, em boa hora, o Ministério Público passou a desempenhar, a partir da constituição de 1988, transformando-o em instituição primordial para a realização das funções essenciais à Justiça.
Pelo artigo 127 da Carta Magna, o Ministério Público "é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis".
Na execução desse mandamento constitucional, nossos procuradores judiciais se têm esmerado na interpretação da missão constitucional que lhes foi outorgada, às vezes até de maneira exagerada, dando sentido amplo aos "interesses difusos e coletivos" a que se refere o inciso III do artigo 129 da Lei Maior.
Assim sendo, indago se não seria o caso de o Ministério Público ir ao encontro dos interesses e direitos das mulheres desmparadas por seu infiel companheiro, criando uma secção destinada a tornar uma realidade a citada disposição penal e a assegurar as obrigações constantes da Lei Civil.
Não creio possa haver interesses sociais maiores e mais legítimos que os que têm sido objeto de meu exame, nem missão tão essencial à nossa organização social, envolvendo não somente o Ministério Público, mas também as Procuradorias do Estado em conexão com as secretarias incumbidas da prestação de assistência social à nossa gente.
Aproveito este artigo para esclarecer que, ao tratar da união estável, o novo Código Civil não podia estendê-la aos homosexuais, uma vez que o parágrafo 3º do artigo 226 a reconhece apenas quando formada "entre o homem e a mulher (...) devendo a lei facilitar sua converão em casamento".
Isso não impede, no entanto, que, mediante lei especial, seja disciplinada a união entre homosexuais, tratando de seus interesses, inclusive no que se refere ao Direito de Sucessão. O Código Civil não é repositório de todas as relações sociais, destinando-se principalmente a reger aquelas que já se acham de certa forma consolidadas.
Estado de São Paulo em 02/02/2002