Sempre me sinto entra e vida e a morte, mais para a morte do que para a vida, neste calor medonho do verão do Rio. Um calor de boca do inferno, um ar pesado que pode ser tirado às colheradas. Em plena praia do Leblon, mesmo com o pé na água, se você riscar um fósforo, ele queima sem tremer até lhe sapecar o dedo. E, nesse ambiente de forno, a gente, talvez por associação, sonha com um iglu, daqueles dos esquimós, todo armado em tijolinhos de gelo, no feitio dos fornos de barro, do sertão. Dentro do iglu, em vez desse suor viscoso que nos gruda a roupa à pele, uma gotinha de água gelada de vez em quando nos pinga no rosto, ou pousa, feito uma pérola, nos pelos de nosso agasalho de couro. O iglu é, assim, uma visão de paraíso, miragem de viajante derrubado pela insolação na areia ardente do deserto.
O pior é que, ante nossas queixas, o pessoal carioca vem e diz: "Logo você, do Norte, reclamando contra o calor!" Triste ignorância. Primeiro, eu não sou do norte, sou do Nordeste. E as pessoas que ainda chamam o Nordeste de Norte são tão antigas! Do tempo em que se considerava como Norte tudo o que ficasse da Bahia para cima. A distinção entre Nordeste e Norte é um conceito moderno, que entrou em voga pela década de 30. E, no Nordeste, o clima é muito diferente do clima equatorial do Pará e do Amazonas. Norte autêntico é o calor pesado e úmido que te envolve com um ar feito de lã, só ocasionalmente aliviado por pancadas bruscas de chuva - violentas e repentinas como se a água do céu fosse despejada sobre o chão. No Nordeste o calor é limpo, claro, todo puro sol. O sol é sempre esticado e transparente como uma gaze azul, cortado aqui e além por raros flocos de nuvens brancas, postas ali só para compor a paisagem.
Tão raro é um céu nosso pejado de nuvens que a gente lá, enfadada de tanta claridade, costuma dizer, ante um promissor céu enfarruscado: "Olha como o tempo está bonito para chover!" Note-se que, para nosso alívio (o que não acontece no sul nem no norte), naquela teimosa limpidez de sol nordestino, sopra sempre, abençoadamente, uma brisa: a viração. Basta você se abrigar do sol debaixo de uma sombra, imediatamente a viração te afaga o rosto, suave e fresca. Por isso é que a viração que sopra na boca da noite, a mais constante e amena, é chamada "o aracati" - palavra que, na linguagem dos índios, quer dizer brisa boa, brisa bonita.
Tem horas, aqui no Rio, em que a gente sai de um ar refrigerado e recebe de chofre, na cara, o bafo incendiário do calor de fora. Mal comparando, recordo nessa hora o que se informava sobre a explosão atômica, logo após o primeiro emprego do artefato em Hiroshima: "Quando a bomba explode, segue-se imediatamente uma rajada de calor violentíssimo; em seguida é que sobe ao céu o cogumelo de fogo". Não é a cara do verão do Rio?
Quando penso no fim do mundo e na infinidade de previsões com que sábios e adivinhos o descrevem, só faço a Deus um pedido: "Se o mundo se acabar ainda no meu tempo, por favor, que não seja pelo fogo!"
Pode vir por contaminação atmosférica, por peste, por colisão com outro astro, por uma grande maré que afogue os continentes. Contanto que não seja pelo fogo. Parece que o fim melhor ainda seria pelo frio. Nada de explosões e chamas, só o ar gelado tomando tudo. A gente vai se encolhendo, se amontoando uns contra os outros, tiritando, batendo o queixo. E aí, sendo o frio cada vez mais forte, baixa aquela sonolência; e se adormece e se morre, sonhando. Pelo menos assim me contou um russo, que quase morreu congelado e já foi salvo dormindo.
Pelo fogo, não!
Correio Braziliense em 03/02/2002