Longe de mim aceitar a velha tese de que o Brasil é um país onde os conflitos sociais são resolvidos em paz, na base do jeitinho e assim por diante. Nossa História, de Canudos ao Contestado, está aí mesmo e não me deixa mentir. Ao mesmo tempo, é óbvio que nos comportamos - nós, a chamada classe média - como uma carneirada sem rival. Resignamo-nos a tudo, até mesmo a sermos governados de maneira condescendente e, ao mesmo tempo, autoritária, entre mentiras, fraudes, hipocrisia e falsas alegações. Fico assim achando que, no fundo, estamos é satisfeitos com o que ocorre em nosso destino coletivo. Acostumamo-nos, por exemplo, à violência urbana e até aceitamos a tese de que ela tem exclusivamente raízes econômicas. Não é inteiramente correto. Tem raízes econômicas, certo, mas também tem raízes culturais muito fortes, eis que, se pobreza e miséria gerassem necessariamente criminalidade, a Índia e Bangladesh, para ficar somente em dois exemplos, seriam matadouros humanos, onde se assaltariam até templos religiosos, como já aconteceu aqui no Brasil - e vive acontecendo, com os geralmente chiques ladrões de imagens enriquecendo suas coleções à custa da pilhagem de igrejas.
Mantemos uma natural subserviência à autoridade, a ponto de ficarmos chocadíssimos quando alguém se dirige a um governante, qualquer que seja o nível dele, de forma democrática e livre, como devia ser num regime onde, afinal, pelo menos na letra da lei, todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido. A autoridade precisa ser respeitada, é evidente, mas não na medida em que se avilte o cidadão. A autoridade, num estado de direito, é legítima porque fundada na vontade popular. Mas, entre nós, não. Nós nos comportamos muito mais como os súditos de um suserano medieval do que como cidadãos legítimos e detentores, conjuntamente, da soberania popular. Quando, faz algum tempo, publiquei aqui uma carta ao presidente da República, carta esta em que tive extremo cuidado para não desrespeitar a instituição e não bater abaixo da cintura, as pouquíssimas pessoas, entre literalmente milhares, que ficaram contra reprovavam o "desrespeito" ao presidente. Que desrespeito? Dizer, como cidadão livre e por acaso autor de uma coluna semanal, o que penso, dentro dos limites da civilidade, é algum desrespeito?
Claro que não cometi nenhum desrespeito, apenas exerci um direito que não me foi concedido nem pelo presidente, nem por ninguém. Tanto eu como vocês temos direito à livre manifestação de opinião e à livre consciência. Chegaram até a dizer que eu invejava o presidente, como se eu me ressentisse do fato de, como ele, não sair me pavoneando pelo mundo afora, comentando seu país como se fosse um observador estrangeiro. Tenho inúmeras outras invejas, mas estas são benignas e fundadas na admiração que alimento, por exemplo, em relação a Shakespeare ou Rabelais. Quem acha que eu teria inveja do presidente está me entendendo pelo avesso, não tenho inveja nenhuma dele, a idéia chega a me parecer cômica. Tenho é pena do papel que ele desempenha na História de nosso país e que um dia vai ser visto na perspectiva adequada, até por quem confunde respeito com subserviência. Agora, sem nos revoltarmos ou nos escandalizarmos, vemos um partido integrante do governo revoltar-se porque o marido da doutora está sendo investigado pela Polícia Federal. Por quê? Não pode? Não se faz? Que é isso, onde estamos? Quer dizer que investigar denúncias e pistas contra alguém ligado ao poder é uma grave ofensa? Qualquer pessoa com mais de 200 gramas de cérebro há de concordar que quem não deve não teme e, mais ainda, que, se tudo fosse regular, a primeira providência dos ameaçados, da dra. Roseane a seu felizardo consorte, seria exigir que as investigações fossem ao fundo, para provar a alegada inocência sobre as alegadas culpas. E o governo, como se reconhecesse que aqui as coisas funcionam assim mesmo, não tem a coragem de dizer isso. Ou seja, mostra que, para os enquistados no poder, existe de fato uma realidade política e sociológica (desculpem a má palavra) onde o povo não pode, nem deve, interferir. Voltando ao que disse acima, isso não se faz, não está direito, direito é sustentar privilégios e prerrogativas inerentes ao exercício do poder. Não temos governantes, afinal; temos patrões, é segundo essa ótica que nos pautamos.
Hoje, escandalosamente para quem saia um pouco do rebanho de carneiros que constituímos, os habitantes de grandes cidades do país convivem com a imoral epidemia de uma doença que poderia há muito estar sob controle e pela qual vários amigos meus foram atacados, alguns deles gravemente. Ninguém acha nada demais sair comprando velas especiais, ingerindo quilos de complexo B, besuntando-se de repelentes de insetos, tomando chá de folha de cravo-de-defunto e assim por diante. Já existem até prósperos negócios vicejando por causa do dengue, pois que, como sabemos, o que dá para rir dá para chorar, nunca falha. E onde ficam as irresponsabilidades testemunhadas, onde fica a nossa dignidade? Onde ficam os impostos por via dos quais nos depenam, de tudo quanto é jeito imaginável? Ficam num comentário de boteco ou outro, num solitário artigo de jornal ou outro. Continuamos a viver em pânico meio sublimado e rezando para que um mosquito infectado não nos pique, ou não pique família e amigos.
É, carneirada somos, carneirada morreremos. Não "desrespeitaremos" a autoridade que nos desrespeita, não reagiremos contra nada. Até porque nos falta até mesmo o sentimento de rebanho. Triste verdade, mas a realidade é que, enquanto os problemas não nos atingem diretamente, damos pouca importância a eles, os outros que se virem. Quer dizer, pensando bem, não temos um comportamento tão ovino assim. Estamos um degrau abaixo, pensando bem mesmo. E, portanto, merecemos nosso destino, não há de que nos queixarmos. Podemos dar um "bé" humilde, de vez em quando. Imagino que isto é suficiente para muitas pessoas.
O Globo em 10/03/2002