Não se pode facilitar. Atualmente, vinha adotando, com notável êxito, a técnica já divulgada aqui mesmo e fornecida por um deles num momento de fraqueza, seguindo a qual, quando um médico dizia "quero ver você", eu lhe mandava uma foto minha recente, com uma gentil dedicatória e anunciando que tinha mais à disposição, sempre que se fizesse necessário ver-me. Funcionava às mil maravilhas e já até previa uma velhice feliz, quando a escada interveio. Muito ancho com minhas imunidades, esqueci a escada, essa traiçoeira construção que liga meu escritório à sala de visitas e comecei a não dar bola para ela.
Trágico equívoco, semifatal distração. Ela até, justiça seja feita, vinha fazendo o possível para me chamar a atenção, mas eu, com a insensatez dos artistas e assemelhados, nem reparava direito. Um tropeçãozinho aqui, uma escorregadazinha aqui e eu nem sequer interrompia a leitura que estava fazendo enquanto a descia ou subia. Afinal, quem liga para uma escada que, afinal, só está ali para aquilo mesmo e não passa de uma mera escada? Ah, minhas senhoras e meus senhores, nunca mais!
Pois não estou eu a descê-la, com um copo na mão e uma lata de guaraná na outra, achando que pairo em convivência com as Musas, quando algo acontece com meus pés que os embola espetacularmente e não me vejo rolando abaixo como um fórmula 1 desgovernado, como alguém descendo uma montanha-russa numa patinete? Não me lembro de nada do que ocorreu durante o tombo desvairado, mas lembro muito bem ter chegado em baixo mais enrolado que um caracol (a miserável, por sinal, não é em caracol) e sem entender nada? Mil socorros de todos os lados, inclusive até do síndico e eu, que, em relação a quase tudo, não sou dos mais inteligentes achei que estava em ótimas condições, até que resolvi sentar no sofá e senti todos os ossos do corpo, que até hoje não sei quantos são, mas foram todos mobilizados para o evento. Concordei debilmente em que chamassem o médico, o qual, depois de me olhar como se eu fosse o monstro da Lagoa Negra, me levou logo para o hospital.
Na emergência, passei um tempo sem entender nada. Que era aquilo, uma reunião de leitores e críticos literários indignados, cobrando meus solecismos e minhas idéias mal-acochambradas? Tratava-se de um pesadelo? Não, não era nada disso, era eu recém-despencado da escada, estendido numa maca e, no espelho em frente, exibindo uma aparência junto à qual o Monstro da Lagoa Negra pareceria a Julia Roberts. Notei, então que estava sendo considerado desacordado e que o papo em torno não era animador.
- Tomografia geral?
- E radiografia total! Tem que ter cuidado para mexer. Se ele se mover aí, segure!
- Você crê que...
- Fratura de órbita? Pode apostar.
- É. Mais problema de coluna.
- Daí pode sair paraplegia, hemiplegia ou tetraplegia.
- Mais algum problema neurológico?
- Ah, nunca se sabe. Edema encefálico, afasia, dislexia, problemas motores...
Quis o Bom Deus que eu fosse poupado da leitura integral do Manual do Interno em Pronto-Socorro porque apaguei, sem até agora saber do que escapei. Quando acordei, um simpático grupo de senhoras e senhores sorria em torno de mim. Sim, escapara de tetraplegia, paraplegia, hemiplegia, afasia e problemas motores. Nem fratura de órbita eu tinha tido, embora meu olho direito houvesse soçobrado, com pálpebras e tudo, por trás de um tomate de feira desses de xepa, já meio escurinhos. E o médico que previra fratura de órbita estava com um ar meio decepcionado.
- Deixa eu dar uma olhadinha nessa craniana outra vez? - pediu ele a outro médico, para constatar, não sem certo desgosto, que a tal orbital não havia mesmo ocorrido. Eu estava bom, precisava apenas verificar se não havia ficado permanente ou parcialmente cego do olho sumido e padecer uma séria de novos exames, todos os quais envolviam "virar a bundinha para lá", ou tentar abrir o olhinho.Tudo em hospital é no diminutivo, já sabia por experiência própria e minha única preocupação era que virar a bundinha revelasse que o meu olho sumido tivesse ido parar lá - pois, como sabemos, há muitos precedentes de mudança de olho.
Finalmente, ligado a uma árvore de soros, mais furado do que almofada de rendeira, fui relegado a um moderníssimo leito hospitalar, agora só para observação (havia muito a observar mesmo, notadamente o mistério do olho) e providências variadas, entre as quais a ingestão de vários desses acepipes de hospital dos quais ninguém esquece. Fiquei quase feliz e agradeci a boa sorte de não ter sofrido o que podia ter sofrido e do que por um triz escapei. Isso até olhar em torno outra vez e ver que a satisfação deles não era tanto pela minha recuperação, mas pela deles. Estavam felizes agora por mim, é claro, mas principalmente porque eu caíra na malha outra vez. Visse lá os sorrisos dos dois clínicos, do ortopedista, do neurologista, do cardiologista, do psiquiatra, da briosa equipe que doravante será minha fiel companheira. Quase peço uma foto do grupo, mas me lembrei que isso configuraria grave injustiça para com o oftalmologista, o urologista e o proctologista, para não mencionar os que injustamente esqueci . Eles me pegaram outra vez, agora não saio mais da malha médica. Tudo bem, eles são ótimos; mas, se eu fosse você, que não está nela, botava as mãos para o céu volta e meia. E tome cuidado com essa escada, qualquer escada.
Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em 16/06/2002