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Vida dura

 

Pode não parecer, mas a vida do jornalista é muito dura. Não me refiro a casos como o do Tim Lopes, que, como tudo mais o que de criminoso se faz no Brasil, nunca vai ser satisfatoriamente apurado. Lá se foi mais um herói, movido por vocação e ideal, porque por fama e por dinheiro ele não era. Jornalistas como ele morrem aos montes, em toda parte do mundo, vítimas de quem quer que contrarie interesses poderosos. Acontece aqui, acontece no Oriente e até no chamado Primeiro Mundo, só que com métodos mais sofisticados, como carros-bombas e semelhantes. Ninguém liga, como ninguém praticamente ligou à passeata em memória do Tim Lopes, um bando de gatos-pingados passeando comoventemente pela orla do Leblon. E nisso mesmo vai ficar, posso apostar.




Hoje, é um dia particularmente ingrato para este que vos fala. Nem em pensamento é tão terrível quanto o que aconteceu ao Tim Lopes e agora mesmo está acontecendo com outros repórteres e correspondentes, em outros cantos do mundo e aqui mesmo, no Brasil. Mas ninguém aqui pensa ou fala em outra coisa que não a Copa e Lula já até comparou o Serra ao Felipão. Não adianta, quer-se adiantar outro assunto e a Copa aparece. E então vos pergunto: como escrever sobre outro assunto que não a Copa? E como escrever sobre este assunto, se o jogo contra a Inglaterra é de quinta para sexta-feira e os jornais só estarão imprimindo o resultados no sábado? Não há santo, nem se eu ficasse com dois palitos escorando as pálpebras e aguardando o final do jogo. Ia ter de sair de banca em banca, distribuindo cópias xerocadas de meu inevitável bestialógico a seus escassos, porém fiéis, leitores.


Dizem que havia um ginecologista inglês, muito antes dessa sem-gracice de ultrassonografiia para determinar o sexo do bebê, que era infalível nesse negócio de adivinhar o sexo do nascituro. Ele tinha um livro onde anotava o nome da paciente e escrevia o contrário do que adivinhava. Aí, quando dava errado, ele mostrava a anotação, que, invariavelmente, condizia com a previsão. Nunca falhou uma vez, é claro. Pensei em propor um esquema parecido ao jornal, mas receei não ser tão bem recebido assim, e desisti.


Mas não desisto de todo e comunico que a atitude geral será a de que, se ganharmos da Inglaterra, o mérito será nosso e, se perdemos, a culpa será do Felipão e dos componentes de sua equipe, sem livrar nem a cara do roupeiro.


É mais que óbvio. Já ensinei aqui, mas, num esforço de reportagem, volto a ensinar. Aprendi a ganhar Copa do Mundo com meu pai e só perdemos quando violei uma regra básica, que era estar junto a ele. Em 58 mesmo, quem ganhou fomos nós. A gente ouvia o jogo entre chiados e ruídos medonhos, trazidos por ondas curtas. Meu pai era surdo tonal e não reconhecia nem o Hino Nacional. Nesse dia, sintonizou uma cadeia de estações nova, ficou de pijama mesmo e, junto comigo, ficamos em posição de sentido, enquanto ele me perguntava se aquela zoeira era o Hino Nacional mesmo. Ao pé, um balde de gelo e uma garrafa de Cavalo Branco, uísque na época muito em voga.


Finalizamos, com um belo gol de Nilton Santos contra a Áustria (naquela época lateral era beque e raramente beque fazia gol, mesmo quando a bola aparecia diante dele, o que não foi o caso do Nilton Santos) e meu pai resolveu que repetindo isso tudo era que se ganhava.


No jogo seguinte, entretanto, o esquema falhou, quase desastrosamente, porque empatamos nervosissimamente com a mesma Inglaterra. Meu pai, nunca um grande democrata, botou a culpa em mim. No prélio seguinte (naquela época se dizia "prélio" ou "match", além de "jogo", quando não, pelos mais ruibarbosianos, "pugna"), fui estritamente observado em minha conduta, inclusive no vestuário (ele usou o mesmo pijama, eu a mesma camisa e até a mesma cueca, sem lavar), enquanto o Brasil não saía de um reles zero-a-zero com o País de Gales. Morrrendo de medo, mas forçado pela mãe-natureza, fui fazer xixi e dei descarga. Gol de Pelé, aquele lance mágico, depois de um lençol em cima de um defensor do País de Gales. Adicionamos este último toque e chegamos ao campeonato cobertos de louros.


- À descarga! - esbravejava meu pai energicamente, toda vez que o Brasil ia ao ataque, e eu ia lá cumprir. Ficamos no um-a-zero contra o País de Gales, mas, daí em diante, soberbamente triunfantes. O mesmo se deu nos jogos seguintes. Incorporamos a técnica ao nosso elenco e meu pai não ficou assustado, nem quando Liedholm (hoje marca de vinho) marcou o primeiro contra a Suécia, no mesmo 58, nem quando Pelé se machucou no primeiro jogo da Copa de 62.


- À descarga! - comandava ele e eu obedecia e Garrincha fez até gol de cabeça nessa Copa.


Por conseguinte, espero estar escrevendo num domingo triunfal. Se todos os que cumpriram suas obrigações o fizeram na estrita observância do dever patriótico, ganhamos e somos responsáveis pela vitória. Senão, como não culpar toda a nossa delegação? E não me venham com essa de escassez de água para poupar descargas, porque a a pátria deveria estar à tona. Tem chovido bastante, vamos tirar São Pedro e a política dessa injusta condição. Ou pelo menos São Pedro, porque, se perdemos, o Eurico Miranda consegue um visto de turista ("green card", nem pensar) no céu e tira a gente dessa situação no tapetão.


 


Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em 23/06/2002

Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em, 23/06/2002