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O denuncismo pego pela goela

 

Presidente do Senior Board do Conselho Internacional de Ciências Sociais - Unesco, Membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz O período eleitoral de 2002, talvez pelo peso das novas opções abertas ao país, marca-se por uma presença nova do Judiciário no balizar um esforço de modernização do processo político brasileiro. Vimo-lo, na decisão crucial da verticalização, ao evitarem-se as coligações da bacia das almas, e responder-se a uma visão nacional dos partidos, na coerência do que proponham aos eleitores. O vai e vem e das reorganizações de chapas dos últimos dias mostra o repto que o chamado Acórdão Jobim impôs aos velhos arreglos, todos apoiados nas políticas de clã, e no voto familístico, que continua a rachar o núcleo da política municipal brasileira. O retalho de cada facção local emenda-se num aprumo único, ou se anula numa soma algébrica contraditória.


O caleidoscópio em que continuem a girar os enlaces da hora correm ao remédio das alianças brancas, sem deixar nenhum denominador consistente de uma vontade política. Não definem estas costuras de legenda uma expectativa de mudança ou de timbre no status quo, no que queiram realmente os seus eleitores. E, ao contrário, são os partidos mais carregados de um conteúdo ideológico os que passam o fosso da inconsistência e apontam ao País para onde vão, e com quem contam para a campanha.


E esse esforço se computa, sobretudo, em tempo de televisão, uniformidade de palanque e de voz reconhecível na propaganda. combinações. O que vai resultar do transtorno imposto ao status quo pela verticalização é um decisivo corte de partidos, de primeira e segunda classe, para crescer no próximo pleito. Isto é, dos que ganham cara, disciplina e visibilidade nacional, e começam o caminho da proposta programática, e os que, no chamego das alianças brancas e do acordo de ocasião, aninham-se aos arranjos da hora da política de clientela. Ou das combinações de fortuna no morno do ramalhete de votos sem repique nacional, quase clandestinos, sem paga correspondente de poder, no cisca-cisca da ciranda de quem se ajudou a eleger.


O fundamental, entretanto, desta nova presença do Judiciário, de seu próprio direito, na arena política, mostra-nos o mesmo ministro Jobim, quando execra a falta de base das argüições de corrupção eleitoral, adiantadas pelo procurador geral Brindeiro, na clara condenação da febre de denúncias aos tribunais, como infecção do moralismo de fortuna, crescido por sobre o justo cuidado e a correição com o exercício da função pública. Não se limitou Jobim a reconhecer a absoluta falta de suporte jurídico no encaminhamento, pelo procurador geral da República, de acusação ao presidente do PT, o deputado José Dirceu, em alegadas operações de extorsão em serviços de transporte urbano, na prefeitura de Santo André, na gestão do assassinado prefeito Celso Lemos. Jobim evidenciou o caráter praticamente temerário da denúncia, apoiada na alegação de um só testemunho, por mais que a saineta dos inquéritos quisessem desdobrá-lo.


E o que mais espanta a opinião pública é a declaração de Brindeiro, de que o convencera a veemência do acusador solitário. Vá, portanto, às urtigas o princípio multissecular que acolhemos desde o Direito Romano de que, testes unus, testes nullus. O Procurador Geral fez ouvidos moucos à norma, que é verdadeira cláusula pétrea, no assentar-se o direito de acusar, e dar-lhe o segmento de um efetivo contencioso, como reclama qualquer processo criminal. O choque vem à toda, nesse Brasil que testa o vergame da sua ordem jurídica, quando o inacreditável não é lance de autoridade judicial, recém egressa dos bancos escolares. Mas do egrégio magistrado, no pináculo das relações entre o Ministério Público e a mais alta Corte de Justiça do país. Não somos, entretanto, uma nação ligada às morais do Bushido japonês aplicado no serviço público, ou da consciência reparatória pelo magistrado, no agravo que implica o seu erro e temeridade, a exigir-lhe a auto-expiação, como o sacrifício que pede a honra da carreira, e a sanção da opinião pública que se lhe segue. Vergastou-a Nelson Jobim, pondo em causa a febre do denuncismo que parece hoje se agregar, como parasita gulosíssimo, a todo o tecido das instituições brasileiras.


Vimo-lo, já, no fragor em que o Ministério Público mordeu os freios da autonomia que lhe dá a nova Carta, no ímpeto com que os nossos novos samurais têm derrubado as presunções de inércia da ação da Justiça, e o usucapião de impunidade que revestiram, por gerações, os donos da República, frente à continuidade de seus abusos de poder e apropriação dos dinheiros públicos. maquinações. É exemplar que a estranheza de Jobim vá ao mais alto escalão do Terceiro Poder. E que o escarmento imposto ao denuncismo abra luz sobre tramas e sub-tramas, em que averiguações clandestinas da polícia, encenações de suspeitas sem prova, conciliábulos de chantagem a pseudo-infratores da lei, deitando luz nesses dias da campanha eleitoral, no porão de novas maquinações. Ou mostrando a escala em que podemos estar à mercê - como já denunciam tantos líderes partidários - de uma polícia política à derrubada de candidaturas e criando, pela suspeita insanável um corredor de morte à habilitação eleitoral. O perigo denunciado pelo presidente do TSE não pode ter maior eco que o do amparo que lhe empresta o ministro Reale Junior. Difícil, nesse desfiladeiro sombrio em que entra o nosso processo eleitoral, encontrar-se quem se tenha mais identificado com a defesa cidadã, no que lhe deve a redação da Carta Magna de 88, nos pontos nucleares do poder de polícia, frente aos Direitos Humanos.


A denúncia do denuncismo não podia vir de fonte mais contundente. O mal vai a corte pela raiz, com Nelson Jobim e Miguel Reale. Mormente quando, pela ação saneadora de Aécio Neves as clássicas suspeitas de corrupção dos membros do Legislativo, saíram do banho-maria eterno das CPIs para serem cobrados, fora do ninho quente dos colegas, na decisão que se extraia diretamente do Judiciário. Em plena consciência, entretanto, da nova e altíssima competência que se lhe dá, e no nervo do assento de uma jurisprudência de efetiva igualdade e interdependência dos poderes. O denuncismo, praga renitente, se escalda, mas tem sete fôlegos. E não morre no cajado só do ministro Jobim. Prolifera enquanto, pelo velho clientelismo, e traficância do poder no Brasil, a República continua como cosanostra. Diante do escarmento imposto ao procurador Brindeiro, nesta sazão, entretanto, não fará mais verão.


 


Jornal do Commercio (RJ) 5/7/2002