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Presença de Faulkner

 

Quarenta anos depois da morte de William Faulkner, anuncia-se no Brasil a publicação de um de seus primeiros escritos: uma série de 17 contos, de 1925, só recuperados em 1957, quanto Faulkner já conquistara o Prêmio Nobel de Literatura (atribuído em 1949 e recebido em 1950). Foram esses contos traduzidos agora no Brasil, com edição marcada para breve. Título original: "New Orleans Sketches", tradutor: Leonardo Fróes, edição da Jusé Olympio Editora.


Apesar de Poe, de Whitman, de Melville, de Henry James, a verdade é que, antes da década de 20, não havia a literatura norte-americana adquirido uma altitude ponderável. A ficção dos Estados Unidos, surgida no primeiro pós-guerra deste século, com Faulkner, Dos Passos, Hemingway, Scott Fitzgerald, foi a responsável pela importância que a literatura daquela parte do mundo assumiu nas letras de toda sua filosofia de vida, suas qualidades e seus defeitos, tudo se mescla aos livros ali escritos, passa a ser a matéria desses livros, sua carne, sua estrutura.


O soldado raso Faulkner, testemunha da II Guerra Mundial, voltara ao Sul dos Estados Unidos, à sua cidade de Oxford, com um sentimento fatalista das coisas. Era, à sua maneira, um unamuniano, no sentido de que alcançava o lado trágico da vida. Para isso, nada melhor do que o Sul dos Estados Unidos, com seu romantismo atrasado, tão pré-lincoln, e suas tradições de segregação racial.


Com esse material muito seu, que o acompanhava desde a infância, começou Faulkner a erguer um mundo inteiramente novo, no conteúdo e na forma. Pouca gente lhe deu atenção quando do lançamento dos primeiros livros. E que na hora se torna difícil um aferimento preciso das coisas. Basta que se diga que, em 1930, ao fazer um balanço literário da década, que fora a melhor do pensamento de seu país, escreveu um crítico, Granvillie Hicks, em tom pesaroso, que aqueles haviam sido os piores dez anos da literatura norte-americana.


Mesmo assim, Faulkner chamava a atenção de muitos, até que "Sanctuary", que não é o melhor de seus romances; mas onde suas qualidades se mostram com mais evidência, fez com que todos se convencessem de que ali se achava um novo tom de ficção.


Como ocorrera antes e aconteceria depois (casos de Poe, no século XIX, e de Henry Miller, no XX), partiu da França o reconhecimento global da importância da obra de Faulkner. Estudos longos sobre romances do escritor de Oxford, Mississipi, começaram a ser divulgados em Paris. Poderia parecer que, com o tempo, diminuísse o vigor de Faulkner. Mas não. A cada novo livro, era uma técnica mais sólida e mais própria que se afirmava.


Em dezembro de 1950, quando da entrega dos prêmios Nobel de Literatura e Faulkner e Bertrand Russell, achava-me em Estocolmo especialmente para assistir à cerimônia. Conversei então com Faulkner e lembro-me de seu rosto firme, ao falar, e das pausas que costumava fazer entre uma frase e outra.


Uma de minhas perguntas referiu-se à possibilidade da influência de Proust em sua ficção. Respondeu-me: "Não há a menor possibilidade". Deu-se a pausa. E acrescentou que lia o menos possível, que ler de mais pode acabar desviando um escritor do seu caminho. Nova pausa. E explicou: "Há influências que ajudam, mas também existem as que matam a originalidade de um romancista".


Da conversa com Faulkner saí com a impressão de que Proust era para ele uma preocupação, um assunto a ser evitado. De personagens, em geral, disse Faulkner que podia inspirar-se em gente que conheceu, mas que não era de muitos amigos. Acrescentou que não gostava de conhecer escritores nem de ter com eles contato. Num certo momento, olhando para a neve que, lá fora, cobria uma rua de Estocolmo, acrescentou: "Raramente vou a Nova York ou a qualquer outra cidade grande em que os escritores se juntam. Vivo no Sul, perto de minha gente e de meu mundo".


Na galeria de personagens da ficção mundial, ninguém poderá esquecer, depois de Faulkner, um Christmas de "A luz de agosto" ou qualquer membro da família Snopes. O primeiro livro da trilogia Snopes, "The Hamlet", ficou isolado durante mais de 20 anos. Veio então "The town", seguido de perto por "The mansion".


Embora possa não ser o melhor Faulkner, resume essa trilogia os principais aspectos da ficção faulkneriana: a vida em Jefferson (na realidade, Oxford), o peso decisivo das aparentemente pequenas coisas, a densidade dramática da escolha marcando cada gesto humano, a presença do destino em todos os pontos de uma caminhada e o aparecimento do novo (os Snopes), juntamente com exemplos do modo como os desafios são respondidos.


Estes são alguns dos ingredientes que Faulkner usa para descobrir a matéria de que é feito o homem. Às vezes é um prisioneiro que foge ("The old man"), outras é um casamento atingido pelo ambiente ("The wild pams"), ou tons de misticismo e de tragédia grega cobrindo um caso de preconceito racial ("Light in august") ou mesmo narrativas policiais no melhor dos estilos em que um personagem presente em toda a obra de Faulkner, Tio Gavin, mistura-se a mistérios e crimes ("The knight gambit").


Ao contar que passara a ler, destacou Faulkner o escritor que então mais o impressionou: J. D. Salinger. De "O apanhador no campo de centeio", de Salinger, diz que exprime o que ele mesmo, Faulkner, sempre tentou transmitir aos outros.


Isto é: a tragédia do homem que deseja pertencer à humanidade, ser parte da raça humana, e fracassa. O motivo do fracasso? Acha Faulkner que, no caso, não havia raça humana a que pertencer, o que torna a tragédia ainda maior. E o personagem particular de Salinger pode ser o homem de hoje, ansioso por integrar uma não mais existente raça humana.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 10/07/2002

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em, 10/07/2002