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O Congresso quase inimigo do povo

 

Todo o estardalhaço da aparição de Severino no cenário nacional cria cenários surpreendentes para o desfecho do segundo tempo de Lula. Confunde os próprios equívocos, entrega as gafes para os tentos do governo, assume os desacertos para piorá-los e atravessa bodes expiatórios no caminho do sistema. E, embalde, atinge Lula, blindado no seu trato de graças e apoios populares. Nenhum anticlímax o fere fundo nesta perseverança do apoio do Brasil de fundo. Abalos, se os há de raspão, nada têm de comum com a crise das CPIs, ou com a tentativa de roubar do Planalto a ribalta por este exorcismo de todos os flagelos em que se transformou o terceiro poder da República. É exatamente o Lula que repete o óbvio, o que se mantém a todo pano, e sabe fazê-lo, tal como conhece cada dobra do ouvido popular.


De provérbio em provérbio, continua a chegar ao cerne de seu apoio, implodisse, ou não, a reforma ministerial, ou se modificasse a Realpolitik para o novo biênio. O presidente sabe o curso desta esperança bruta, que aparece como irracional para os bem-pensantes e o Brasil de salão. A perda desse vínculo não se dará em benefício de nenhuma outra facção, nem cai como prato feito nas mãos da oposição oficial.


Seguro nesta fortaleza das crenças no País desmunido, seria só do mais fundo dessa fé - e até, pois, do seu irracional - que se poderia mudar, para valer, as avaliações de Lula. E não há cenários ou cálculos para avaliá-los, caso, não mais que de repente, aconteça o soçobro do PT, e corra a multidão nacional que o elegeu, neste abate então da fé política, à busca, como consolo, do bálsamo da hora do evangelismo de massa. É nos quadros de um desamparo literalmente religioso que vêem alguns a passagem dos órfãos de Lula ao regaço destes pastores do conformismo, de par com a venda do cataplasma de esperança para chegarem ao poder político.


Todo e qualquer exercício de cenários apocalípticos de para onde vai o eleitorado se o Governo não der certo se atravessa, agora, pelo espetáculo claramente anunciado com que Severino ameaça transformar o Legislativo no inimigo do povo. Eis, de vez, a protagonização dos erros, desvios, anedotas, desmandos, esperas e desculpas com que o neocomportamento canhestro do Legislativo passa a estorvo diante da opinião pública, a clamar pela urgente rearrumação da casa. Aí está mais que nunca a Câmara transformada em cosanostra; a ameaça do devoramento clientelístico da Lei de Meios, aberta a goela do fisiologismo, deglutido sem receios o poder para a benesse, a nomeação, o aumento e a prebenda, arrematados na quitanda dos favores, no centro da Praça dos Três Poderes.


O mais esplendido physique de rôle reforça a impavidez da exposição de Severino e a passagem, logo, às vias de fato do que prometeu. Para onde for, seguirão os 300 votos do porão da Câmara, que vem à luz pela primeira vez, para deslumbrar-se com a força conquistada. Os erros já desbordam a pilha dos desmentidos e explicações. Mas o bloco da madrugada da eleição de todos os espaventos continua mudo e quieto e só robustece o a que veio o presidente da Câmara no melhor agreste da sua arrogância.


Difícil encontrar-se para o perfil emergente do Congresso melhor parescença que a de Severino com todo o garbo do grotesco. Não se justifica, nem se corrige, e no melhor do poder intransitivo vai ao que lhe cabe e lhe corre nas veias. Inundou a pauta com as urgências de afogadilho. E, sobretudo, adotou o precedente de sequer consultar as lideranças partidárias para mover a Casa, nem quer saber se esta a maneira de pôr-se o carro no trilho, para o biênio nascido da forra de todos os ressentimentos.


Entre Governo, situação e oposição, Severino traçou-nos bissetriz do impróprio, a somar uma frente nacional de repúdio. É prioridade de abate já. Difícil encontrar-se melhor consenso do que a evidência do que se deve deixar para trás. Esta copiosíssima voracidade no exercício dos poderes da Mesa da Câmara pode estar às vésperas, pelo exorcismo a que dará lugar, de um verdadeiro passo à frente do Legislativo. Ou não? Vamos dever ao terceiro homem da República o mostrar de corpo inteiro a voz do arcaico no Congresso, recortado pelo voto do estupor.


O Brasil de antanho nunca alimentara chegar a governo, nesta plenitude toda em que exercê-lo é ir à forra. Sem escape, e em nudez solar, o baixo clero se mostra no não ter nada, de fato, a dizer, senão em causa própria. Polarizou-se o País das clientelas, tantas vezes a buscar o álibi de legítimos interesses regionais para confundir a contumácia com o exercício mais doméstico do mandar, e das vantagens que só ficam em casa.


A Mesa da Câmara saída da madrugada da abominação não tem ela nenhum petista no seu seio e ganhará os próximos meses a oportunidade inesperada da vasta e definitiva varredura do que sobra e atravanca o País. E os trunfos e desditas de Lula e Severino têm a paga dos dois Brasis distintos a que pertencem. O presidente sabe isolar-se, até do próprio governo na manutenção da crença no seu êxito, e de ser ele o único responsável - na visão popular - por este resultado. Mas a condenação de Severino leva, ao mesmo tempo, a de todo o Congresso.


Não sem razão, aliás, há muito tempo, Lula acertara no número mágico dos 300 picaretas como obstáculo na Câmara para desimpedir a legislação de um Brasil para a mudança. E é a mesma cifra que vamos dever uma limpeza do imaginário nacional, com este fim sumário e definitivo do País arcaico. O PT, ao contrário, sabe fugir desta crise com legítimas lideranças emergentes, como a de Biscaia, na Comissão de Constituição e Justiça. Mas tem um prazo curtíssimo no seu credenciamento popular para que o baixo clero, na sua desgraça, não leve também, junto à opinião pública, o caixão do Congresso.




Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 01/07/2005

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 01/07/2005