São pouquíssimos os consensos formados em nossa vida pública. Um deles foi obtido agora, com a crise que o governo atravessa. É a necessidade da reforma política, que gerou e explodiu no escândalo do "mensalão". Mesmo que se descontem os exageros das acusações do deputado Roberto Jefferson, por mais que o desqualifiquem, todos sabemos que as campanhas eleitorais e a existência física dos próprios partidos são custeadas com dinheiro arrancado das estatais, de bancos e empresários.
A política que se pratica no Brasil é pautada, do início ao fim, pelo dinheiro dos grupos interessados em criar um pasto para seus apetites e interesses. Sempre foi assim?
Não tenho elementos para falar do passado, a não ser do mais recente. O PT seria uma exceção, como o velho Partidão, que recebia ajuda da União Soviética, mas tinha um conteúdo ideológico, do qual não abria mão e pelo qual morreu de morte esfacelada. O PCB não mais existe em parte porque a fonte secou, ficou sem doutrina e sem dinheiro.
O PT prosperou materialmente à medida que se corrompia ideologicamente, tornando-se um partido igual aos outros, tão igual que deu no que está dando, com toda a sua doutrina concentrada em obter mais quatro anos de mandato para Lula fazer o que agora tem feito: o oposto do que prometia.
Os demais partidos, de esquerda ou direita, ainda no passado mais recente, tinham um certo pudor e procuravam manter uma integridade desvinculada do dinheiro alheio. Após a ditadura do Estado Novo, aproveitando os ventos democráticos que sopravam sobre o mundo liberado do nazi-fascismo, dois partidos nacionais, um de direita, outro conservador, dominaram durante algum tempo o cenário político nacional.
O Partido Social Democrático (PSD) era o eixo em torno do qual girava o conservadorismo alimentado pelos remanescentes do Estado Novo, notadamente em suas bases rurais. Elegeu dois presidentes, o marechal Dutra, que governou vegetativamente, mas sem atropelos morais e crises dramáticas, e Juscelino Kubitschek, que enfrentou crises na proporção em que fazia o Brasil crescer 50 anos em cinco. Com razão ou sem ela, credita-se ao PSD a normalidade institucional que vigorou até 1964 apesar dos baques provocados pelo suicídio de Vargas e pela renúncia de Jânio Quadros.
A União Democrática Nacional foi o estuário natural da direita, produziu vultos notáveis pelo reacionarismo e pela estatura intelectual de alguns deles. A UDN sobrevive de certo modo em grupos inseridos em diversos partidos do espectro político nacional, notadamente no PSDB, apesar de sua trombeteada modernidade.
É curioso como ambos, PSD e UDN, deixaram viúvas, não no sentido pejorativo do choro pelo leite derramado, mas pelos valores que ambos defenderam. Vou dar um exemplo que muito me comoveu apesar da antipatia que sempre nutri pelos udenistas de maneira geral.
A UDN era sustentada materialmente pela contribuição de seus adeptos, alguns fanatizados pelo programa moralista e reacionário do partido. Até hoje, passados tantos anos da sua extinção, a UDN mantém acesa no coração de seus fiéis a chama da eterna vigilância que não se apagou.
Aqui no Rio, o partido dispunha de uma sede bem situada, na Esplanada do Castelo, duas salas amplas, em prédio de construção quase luxuosa. Com a extinção do partido, as salas ficaram vazias, mas a locatária, que era a própria UDN, obrigava-se a pagar os impostos, que são altos nesse trecho da cidade.
Um grupo de antigos udenistas bancava o prejuízo e, como não podia vender nem alugar o imóvel, resolveu doá-lo à Academia Brasileira de Letras, que é próxima e tem uma biblioteca em expansão, precisando sempre de novos espaços.
Por iniciativa de um acadêmico, Oscar Dias Corrêa, ex-deputado da UDN, ex-ministro da Justiça e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, levou a proposta da doação, mas com uma condição imposta pelos udenistas ainda vivos: a Academia ficaria com as suas salas, mas se comprometeria a deixar para sempre, no lugar onde estavam, um retrato do brigadeiro Eduardo Gomes e a foto de um dos comícios do brigadeiro pela redemocratização do Brasil, ocorrido em 1945.
Apesar do respeito e do carinho que a Academia tem por um de seus membros mais notáveis, a doação foi recusada. Sendo uma instituição sem vinculação política, em suas paredes só podiam estar quadros e retratos referentes à vida literária, à do Brasil principalmente. Ali estão bustos e quadros de Dante, Camões, Guerra Junqueira, Eça de Queiroz, predominando os autores brasileiros, acadêmicos ou não.
Impossível ter, em espaço oficial da ABL, o retrato de um político e de um comício partidário, por mais respeitáveis que fossem. Moral da história: a Academia ficou sem a doação, e a velha UDN, representada por Oscar Dias Corrêa, ficou com o prejuízo de continuar pagando os impostos de um imóvel caríssimo. Permanece fiel a seu patrono (o brigadeiro) e a um instante de sua história, da qual tem orgulho e saudade.
Folha de São Paulo (São Paulo) 08/07/2005