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Ampla e profunda reforma

 

Na medida em que avançam as investigações ora em curso no Congresso e no âmbito do Executivo, vão se avolumando as indicações de que são procedentes as denúncias que vêm sendo formuladas pelo deputado Roberto Jefferson. Nada seria mais nocivo para a respeitabilidade do Brasil e do governo do que o intento de neutralizar essas investigações, como buscam fazê-lo alguns insensatos líderes governistas. É imprescindível, como oportunamente afirmou o presidente Lula, e reiterou recentemente o senador Pedro Simon, levar essas investigações às suas últimas conseqüências, doa a quem doer.


Sem prejuízo da relevância do que já foi revelado, ainda há muito a apurar, tanto no que se refere aos detalhes das diversas operações ilícitas que estão vindo à tona como no que diz respeito aos responsáveis por elas. Não obstante, já se dispõe de um quadro alarmante do atual sistema político brasileiro e de indicações mais do que suficientes para se empreender, urgentemente, uma ampla e profunda reforma política.


Em síntese, o quadro político que se tornou evidente revela gravíssimas limitações da legislação que regula o regime eleitoral, o sistema dos partidos e o funcionamento dos Poderes Legislativo e Executivo em nosso país, conduzindo a uma abominável mercantilização da vida pública. Privado de condições para assegurar uma responsável maioria parlamentar, o presidente da República é compelido, para poder governar, a entabular as mais esdrúxulas alianças.


No governo Fernando Henrique Cardoso, esse objetivo foi satisfatoriamente atingido por meio de uma aliança entre dois partidos razoavelmente sérios, um partido de centro-esquerda, o PSDB, e um partido de centro-direita, o PFL. O resultado foi uma aceitável margem de governabilidade -ao preço, porém, de uma política econômica neoliberal, nitidamente contrária aos ideais do próprio presidente e aos interesses nacionais.


Chegando ao poder após a quarta tentativa, Luiz Inácio Lula da Silva optou, para assegurar condições de governabilidade, por se aliar a pequenos partidos fisiológicos, destituídos de qualquer significado público, como o PTB, o PP e o PL. Para que esses "partidos anões" dispusessem da necessária massa crítica, tudo indica que o governo (leia-se: ex-ministro Dirceu) e a liderança do PT -Genoino et alia- introduziram um altamente ilícito ingrediente: a "compra" de deputados mediante o pagamento de "luvas", que se estima da ordem de R$ 1 milhão, e de um "mensalão", suposto na ordem de R$ 30 mil.


Para viabilizar esse procedimento, altos cargos das empresas públicas foram mercantilmente loteados entre os partidos da "base aliada", independentemente de qualquer critério de competência, de sorte a permitir formas ilícitas de apropriação de recursos públicos, destinados ao financiamento da compra de votos e às campanhas eleitorais.


Ante os fatos que vêm sendo revelados, a opinião pública brasileira e, o que não é menos grave, a internacional, estão convictas de que esse sistema foi aplicado e está em vigor.


Encontra-se o Brasil ante um gravíssimo dilema. Um dilema, importa sublinhar, cuja seriedade ultrapassa o casuísmo de maiores provas e conduz a uma escolha nacional: opção pela conivência com uma situação infame ou seu enérgico repúdio e correspondente regeneração pública.


É compreensível e lícito que o presidente Lula, profundamente vulnerado por tudo o que está sendo revelado, procure assegurar novas condições parlamentares de governabilidade. Entendo, pessoalmente, que uma séria opção por um ministério de competências, independentemente de vínculos partidários, lhe seria atualmente mais favorável do que o recrutamento de parlamentares de um partido como o PMDB, que não dispõe de nenhum compromisso programático e, ademais, adere (oportunisticamente) ao governo pela metade.

Muito mais importante que o intento de recompor bases parlamentares é o de recuperar bases de respeitabilidade pública. É hora de ocorrer uma ampla e profunda reforma do sistema político, da qual dependem todas as demais reformas requeridas para a retomada do desenvolvimento econômico e social.


O atual regime eleitoral é extremamente vicioso. É praticamente inexistente uma apropriada regulamentação dos partidos políticos. É inevitável, dentro do atual sistema, que o presidente da República, seja qual for seu partido, fique privado de condições parlamentares de governabilidade e, assim, compelido a arranjos programaticamente de má qualidade, como ocorreu com o governo Cardoso, ou eticamente de péssima, como ocorreu com o governo Lula.


A reforma política em andamento no Congresso dá só parcial atendimento àquilo de que necessita o país. Importa aperfeiçoá-la. Há ampla concordância, entre os estudiosos da questão, no que se refere à adoção do regime distrital misto e ao financiamento exclusivamente público das eleições. Idem no que diz respeito à necessidade, para um partido subsistir, de alcançar o mínimo de 5% (não 2%) da votação em quase todos os Estados da Federação.


Importa, finalmente, agregar dois outros dispositivos. O da fidelidade partidária, em cada legislatura, sob pena de perda do mandato. E o da adoção de medidas que importem, também para cada legislatura, na formação, se necessário por coligação de partidos, de uma maioria parlamentar estável, com programa e liderança únicos, pelo curso de toda a legislatura. Apenas assim se proporcionará ao presidente uma maioria parlamentar estável que lhe poderá ser favorável ou não, como no caso francês da "co-habitação". Isso, porém, num ou noutro caso, assegurará confiabilidade parlamentar ao Poder Executivo.


Folha de São Paulo (SP) 10/7/2005