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Por falar em retórica

 

O conceito de retórica, citado em artigo de Luiz Paulo Horta nesta página, tem sido desfigurado, ainda mesmo entre pessoas de escolaridade confiável. Neste vocábulo, há quem veja algo de pejorativo ou de inferiorizante.


Esta é, de fato, a compreensão vulgar; os dicionários a registram em segundo plano, priorizando a retórica propriamente considerada como arte - "arte de eloqüência, de bem argumentar, de dizer"; uma disciplina antes da precisão ou da clareza que um mero conjunto normativo.


Por isso mesmo, foi matéria de ensino nas universidades da Idade Média e ainda no século XVIII, convindo notar que integrou, no Brasil, currículos escolares respeitáveis, sob a inspiração de um desígnio ao mesmo tempo superior e prático: formar peritus dicendi - o perito no dizer. Não se objete que estou pondo em pauta exemplos anacrônicos. Em 1953, quando a Academia Sueca distinguiu Winston Churchill, proporcionando-lhe a consagração universal do Prêmio Nobel, justificou a láurea com esta concisão: "Pela sua fulgurante oratória".


O que afinal convém é estabelecer a diversificação dos valores. Há retórica e retóricas. A antiga terá sido o empório da ênfase, o cacoete do verbalismo, a verbiagem, a congestão da palavra. Outra retórica será a eloqüência intrínseca, fruto, e às vezes flor, da cultura literária, da educação do gosto, do polimento intelectual.


Torno a evocar o velho e sempre novo Churchill. Quando falou ao seu povo sobre o quase milagre que foi a rápida formação da Real Força Aérea da Inglaterra, para o contra-ataque à Alemanha nazista, o primeiro-ministro mobilizou, na hora certa, o justo orgulho e a gratidão de homens, mulheres e até crianças do Reino Unido com aquelas palavras de ouro maciço: "Nunca tantos deveram tanto a tão poucos."


Pouco antes, creio, já o tribuno modelar, no auge da guerra, confessava shakespearianamente à Grã-Bretanha que só poderia prometer, naquela altura, "sangue, suor e lágrimas". O ingrediente da sua retórica, que inflamaria o nosso Castro Alves, belo retórico, foi a própria dureza da sinceridade total.


Não é demais assinalar: ao lançar a sua promessa trágica, não incidiu na fealdade do grito, do estrepitoso. Na arte oratória de Churchill, a retórica, muitas vezes, estava na própria concisão. Era a força de motivação, como o foi a de Danton, após a derrocada da monarquia opressora, diante da Bastilha em chamas e abrindo os braços para o povo: - Agora, nós!


Quero rematar estes comentários com uma revelação do historiador e helenista David Hunt, que foi embaixador da Grã-Bretanha no Brasil e havia sido secretário do Gabinete do primeiro-ministro, precisamente Winston Churchill. A convite do Pen Clube do Brasil, Hunt, sócio correspondente, resumiu na Casa suas experiências de convívio e de trabalho com o grande homem. Dentre outras coisas atraentes, contou-nos esta: certa manhã, encontrou o velho político inteiramente concentrado na redação de um texto. Era um discurso que teria de pronunciar no Parlamento, no dia seguinte. Ao aproximar-se da mesa de trabalho do chefe, notou que ele reservara uma larga margem no bloco em que estava redigindo a peça. Tomava quase a metade da página. Estranhou e indagou por que deixara em branco tanto espaço. E o mestre da retórica explicou: "Neste espaço, quando eu acabar de escrever, vai ficar a pauta musical. Conforme o assunto ou o arremesso oratório, virão as variações de entonação na tribuna: grave, suave, ágil, pitoresco, alegretto..."


No auge da guerra, manteve Churchill o zelo literário, em termos precisos de estética oratória e preservação de uma retórica da mais clara utilidade pública, em sua ilha e para o mundo.




O GLOBO (Rio de Janeiro - RJ) em 05/08/2002

O GLOBO (Rio de Janeiro - RJ) em, 05/08/2002