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O fim da impunidade

 

Aposto que vocês ainda não sabem do triste caso de Bingo. Procurei comentá-lo com vários amigos e ninguém tinha ouvido falar de nada sobre o assunto, para mim palpitante e talvez um marco em nossa realidade. Como eu já disse aqui, às vezes parece que sou o único a ler certas coisas, a ponto de recear ser tido como mentiroso. E, de fato, de vez em quando eu conto uma mentirinha, mas é caso raro, perfeitamente compreensível para um ficcionista e nunca suficientemente sério para justificar essa fama. Mas o caso não é inventado, é um drama da vida real e estou com o recorte na mão, para mostrar a quem duvidar da história comovente de Bingo, que, apesar de seus aspectos talvez melancólicos e certamente controvertidos, acaba por abrir caminho para vários progressos, em que o país, mais uma vez, poderá servir de exemplo para o mundo e alento para os brasileiros já descrentes das instituições, como acho que está a maior parte de nós.


Bingo é um cachorro vira-lata, de naturalidade piauiense ou maranhense, não se sabe ao certo. Não saiu foto dele no jornal (talvez ele tenha exigido cobrir o focinho, como fazem os criminosos humanos, diante das câmeras implacáveis dos jornais e da tevê), nem foram publicados maiores dados - como direi? - pessoais sobre ele, que, certamente, não fala nem em juízo, quanto mais a um jornalista qualquer. Mas estou seguro de que seu lugar na História já está garantido, pois é pivô de um caso singular. Ele foi condenado a encarceramento por um juiz da cidade de Timon, no Maranhão, e está cumprindo pena há um ano e meio, no Centro de Controle de Zoonoses local. Segundo também leio, ele conta com a assistência de um advogado, mas, ao que parece, não tem direito a fiança e não pode explicar suas ações e certamente teve pedidos de habeas-corpus indeferidos - porque ninguém fala cachorrês com a necessária fluência para um caso dessa magnitude.


Tampouco sei se a prisão é arbitrária, apesar de ser verdade, segundo testemunhas, que ele mordeu alguém, que deu queixa em juízo. Mas será que já tem culpa formada? Será que, em sua defesa, não pode alegar atenuantes ou excludentes de culpa, como, por exemplo, haver mordido em legítima defesa ou, como diz uma figura do direito penal, movido por violenta emoção após injusta provocação da vítima? Não terá sido privação momentânea dos sentidos? Por que Bingo continua preso dessa forma, já tendo provocado até mesmo manifestações de solidariedade em Teresina, que fica perto de Timon? Haverá, enfim, dolo na mordida?


Não se pode dizer que Bingo tenha sido vítima de maus-tratos ou que seus direitos caninos estejam sendo violados além do que já foram. Preso por um oficial de justiça, conduzido numa viatura para o presídio sem direito a defesa, já deve ter sofrido bastante. E, mesmo que seu advogado seja diligente e hábil, vai ser difícil para ele comparecer à presença da autoridade. Será que o inquérito não terá sido viciado? Haverá ele mordido também o delegado, desacatado o oficial de justiça ou latido insolentemente para o juiz? A mordida é considerada crime hediondo? São indagações sérias, para um Estado de direito como dizemos que somos. Até agora, não vi nenhum movimento da cidadania para apurar este e outros aspectos da questão, com exceção dos protestos piauienses.


Mas, como eu dizia, os direitos de Bingo estão mais ou menos garantidos, dentro do estabelecimento penal em que se encontra. É mantido numa jaula decente e, como qualquer outro detento, tem direito a banhos de sol, embora não se informe se ele, como deveria ser, também faz jus a visitas íntimas periódicas. (A visitas humanas ele tem direito, mas pode ser que, de vez em quando, pense numa cadelinha caridosa, nunca se sabe.) De acordo com depoimentos dos que acompanham o caso, ele recebe alimentação adequada, talvez melhor do que certas quentinhas que andam por aí. E só ficou deprimido nas primeiras semanas de cadeia, mas agora, decorridos quase dois anos do seu recolhimento ao xadrez, revela estoicismo e resignação e não há queixas quanto a seu comportamento.


São esses pelo menos alguns dos aspectos aos quais as autoridades responsáveis devem prestar atenção e tomar as providências cabíveis. Mas tudo neste mundo tem seu lado positivo. O Brasil, pelo menos, pode alegar que sua Justiça funciona e aplica o dinheiro público escrupulosamente. Em época eleitoral, como a de agora, é mesmo possível que algum candidato prometa a criação de juizados especiais para cachorros ou para bichos em geral ou até instituir o júri popular para animais acusados de faltas muito graves.


Por outro lado, será que esse fato não está acabando com a nossa famosa impunidade, ou pelo menos mostrando que é possível a um condenado brasileiro permanecer mais de um ano na cadeia, fato raríssimo, como sabemos, principalmente em ocorrências corriqueiras, como um seqüestro ou uma fraude bancária? Vamos torcer para que isso aconteça. Tolerância zero para cachorros delinqüentes ou até para gatos que violam a lei do silêncio nas madrugadas. Espero também que os jegues, como acontece em Itaparica, não dêem vazão a seus instintos libidinosos em plena via pública, além de muitos outros progressos. Enfim, justiça, justiça para todos. E alegria também, porque pelo menos cachorros eles prendem no Maranhão. Ou não?


 


O GLOBO (Rio de Janeiro - RJ) em 04/08/2002

O GLOBO (Rio de Janeiro - RJ) em, 04/08/2002